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Mulheres Possíveis: corpo, gênero e encarceramento II

Uma página ocupada por expressões comumente usadas na prisão, que estão atrás de linhas pretas que as tacham; esse é um dos textos do livro Mulheres possíveis: corpo, gênero e encarceramento que mais chamou nossa atenção e que queríamos traduzir para o espanhol. O que nos atraiu particularmente nesse texto é que ele resistiu à nossa leitura. O texto foi escrito em um português que entendemos apenas parcialmente. Nele apareceram diversas expressões que escaparam até mesmo dos registros da internet.


                                                Fonte da imagem https://www.vaniamedeiros.com/mulheres-possiveis

Para entender o que o texto queria dizer, foi necessário que o lêssemos com pessoas que viviam no território de onde provinha. Foi assim que o levamos para uma das oficinas que Direito à poesia realiza na Penitenciária Feminina de Foz de Iguaçu e perguntamos às participantes o significado das expressões. Sua identificação com o texto foi imediata. Elas sabiam e nos explicaram o significado das expressões, embora, como nos alertaram, algumas delas sejam usadas em São Paulo, mas não em Foz.

Graças às participantes da oficina, tínhamos informações suficientes para tentar traduzir o texto, mas ainda tínhamos o problema de saber para qual espanhol traduzir. Traduzi-lo para qualquer forma de espanhol padrão traria uma transparência que acabaria com ele (não é a transparência absoluta o objetivo dos mecanismos de controle?), sem mencionar o espanhol supostamente neutro que existe apenas como um artefato de mercado para neutralizar os poderes das diferentes formas de falar no continente. Por outro lado, pareceu insuficiente traduzir o texto optando por formas coloquiais de alguma variante do espanhol, pois não deixaria de apagar suas marcas territoriais. 

Para restaurar essas marcas, contamos com a colaboração de alguns coletivos da Red Feminista Anticarcelaria de América Latina, que trabalham junto com mulheres privadas de liberdade em diferentes países do continente, como: Yo no fui de Buenos Aires, Argentina; Hermanas en la Sombra de Morelos, México, e Pájarx entre Púas de Los Andes e Valparaíso, Chile. Propusemos a tarefa de traduzir o texto, com base nas explicações que enviamos a elas sobre o significado de cada expressão em português. Os resultados podem ser vistos nesta entrada. 

Como era de esperar, as tradutoras nem sempre reconheceram expressões locais análogas às usadas no presídio do Brasil, e por isso algumas não foram traduzidas. Os espaços em branco nos textos dizem respeito a essas expressões. No caso do Chile, as tradutoras de Pájarx entre Púas nos deram mais de uma opção para traduzir algumas das expressões, e decidimos incluir a maioria dessas variantes. As companheiras de Yo No Fui, da Argentina, além de traduzir as expressões, compartilharam conosco ainda outras usadas nos presídios de Buenos Aires, as quais foram incluidas no final de sua tradução.   

O processo de diálogo e construção conjunta com as coletivas da Red Feminista Anticarcelaria de América Latina não foi apenas um enriquecimento para a tradução, mas também uma experiência de conexão e aprendizagem mútua das diferentes formas de dizer das prisões da América Latina. Convidamos cada leitora/e a mergulhar nestas páginas, não apenas como um ato de descoberta, mas também como uma oportunidade de construir pontes para outros mundos.
















Participaram da tradução e revisão desta entrada: Bruna Macedo de Oliveira Rodrigues, Mario Rodríguez Torres, Ximena Vargas, Janaina Andriolli, Caterine Hernandez Valencia, Penélope Chaves Bruera e Cristiane Checchia

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