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Acima apresentamos um mapeamento alguns dos diversos projetos artísticos que desenvolvem atividades nos cárceres d'América Latina. Cada projeto está assinalado com um 🕮 e as homenagens com uma ★. Para ampliar a região clique ➕ e para diminuir clique ➖

quarta-feira, 16 de março de 2022

Projeto Andorinhas em Tocantinópolis 2 - Entrevista com Antônio Pereira da Silva, autor de “Entre pássaros, cegos e respiração: um viver pós-prisão”.

    Nesta entrada publicamos a entrevista que fizemos a Antônio Pereira da Silva que participou do projeto Andorinhas de 2018 a 2020 quando estava na Unidade Penal de Tocantinópolis. Antônio é uma das pessoas que falam sobre o projeto Andorinhas no curta-metragem que compartilhamos na nossa entrada passada. Ele nasceu em Tocantinópolis, mas hoje mora em Palmeiras. A entrevista foi realizada por Mario Torres, integrante da equipe de nosso blog, vía plataforma virtual.

    Depois da entrevista, xs leitorxs também vão encontrar o texto “Entre pássaros, cegos e respiração: um viver pós-prisão” que Antônio escreveu para o livro  Andorinhas Reinventam a Prisão, organizado por Aline Campos e por Rafael Caetano do Nascimento.

  

Mario: Como você entrou no Projeto Andorinhas? 

Antônio: No início de 2018, a doutora Aline adentrou o sistema onde eu estava recluso e ela veio com uma proposta de um "Clube dos livres", clube de leitura. E através do clube dos livres, do clube de leitura, que eu cheguei ao Projeto Andorinhas, e também na escola formal, que não tinha dentro do cárcere. 

Mario:  Por que você decidiu participar do "Clube dos livres"? Como foi esse processo?

Antônio: Através do projeto de extensão da universidade (UFT) eu cheguei ao  "Clube dos livres". A gente escreveu dois livros nesse período, entre a reclusão e a minha saída…

Nós fizemos a impressão dos livros, primeiro esse, o “Ler e escrever na prisão” e o segundo é o “Andorinhas reinventam a prisão”.

Mario: Você participou de ambos?

Antônio: De ambos, participei dos dois. A gente pegava peças literárias, peças teatrais e transformava em resenhas, aí chegou nesse primeiro livro. E o que o projeto me trouxe de mais significativo, vamos dizer assim, foi dar continuidade aos estudos. Foi através desse primeiro projeto, o “Ler e escrever na prisão”, que era o "Clube dos livres", que eu voltei a estudar. Fiz dois ENCCEJAS, fundamental e médio, passei nos dois, lá dentro, e quando saí, já agora em 2020, eu fiz o ENEM e ingressei na faculdade em 2021.

Mario: Que bom! Você está estudando o que?

Antônio: Educação do Campo, licenciatura em Educação do Campo.

Mario: ...Você entrou no "Clube dos livres" por interesse, por que queria continuar estudando, por que não tinha mais oferta?

Antônio: Curiosidade. Quando ela [Aline Campos] chegou com a proposta – eu não sou muito de acreditar no ser humano, principalmente quando chega alguém num lugar como uma prisão ofertando algo que beneficie uma classe que todo mundo tenta esconder, aqueles que vivem no sistema carcerário, incluso fora dela. A hora que alguém chega ofertando algo que possibilite uma volta à sociedade mais rápido pra aquele indivíduo que está sob a custódia do Estado. Aí eu me disse: vou ver o que essa menina tá querendo.

Mario: Desde o começo você achou que era interessante, quando começou a assistir? O que foi conectando você, o que foi interessando você para decidir continuar?

Antônio A temática do projeto em si. Eu sempre gostei de estar mais isolado, não sou muito chegado à multidão, mas me vi num lugar que não tinha pra onde correr, não tinha pra onde fugir. Eu gostava de ficar sozinho e me vi numa cela com 22 homens. E o Clube dos Livres era, e acredito que ainda seja, um espaço onde o preso se sente vivo, se sente um pouco gente dentro daquele sistema, dentro daquele lugar. Isso foi me dando mais ânimo para continuar.

Mario: O que acontecia nesse espaço para que você diga isso, de se sentir gente, de sentir vivo?

Antônio: O convívio com pessoas que não estão sob a mesma prisão, sob o mesmo regime de lei. Porque, igual eu disse no texto, o sistema aprisiona o ser humano, não só pelo fato de estar preso. O sistema aprisiona o ser humano de várias maneiras. Ele inclina o ser humano a sair de lá... eu digo, dez, doze, não tem a quantidade de vezes pior do que ele entrou.

Quando a gente se vê inserido num espaço que tenta quebrar esse estigma é gratificante. E além do termo da remição, remição de pena. Eu seria um grande hipócrita se eu dissesse que não estava almejando uma saída mais breve.

Mario: Das atividades, o que você gostou particularmente, você se lembra de alguma obra que tenha lido que você gostou, ou do processo de escrita dos livros, por exemplo?

Antônio: Tenho que ver se eu lembro… eu fiz referência a ela num desses comentários que vem escrito, porque minha memória agora... "Metamorfose", do Franz Kafka. Se não me engano. Achei muito interessante o jeito que ele aborda o assunto.

Mario: Como foi trabalhado? Vocês leram juntos?

Antônio: Era distribuído. Primeiro que a quantidade de livros era curta então Aline fazia várias cópias daquele livro e distribuía entre os participantes. Aí teve uma editora que fez a publicação do primeiro livro, que foi a Chão Editora e a Biblioteca foi crescendo. Aí a gente pegava livros pra ler, mas do mesmo autor, com a mesma história. E então debatíamos, tinha o debate entre os detentos e as meninas da UFT que fazem o projeto de extensão. Porque eu acredito que todos aqueles que participaram do projeto devem muito a elas também. Porque a gente vê jovens quase formadas se interessarem por um tema de entrar e sair de uma cadeia, se ver num lugar onde só tem homem, né. Achei elas umas meninas bem corajosas. Uma delas um dia me disse "cara, achei que lá ia ser diferente, que os caras iam desrespeitar a gente e tal. Aí eu falei pra ela não, aqui dentro do sistema são três coisas que o preso respeita: o médico, qualquer que for aquele que chegue disseminando qualquer tipo de religião que fale de Deus e o professor. Esses três tipos de ser humano para o preso sempre é bem-vindo, a presença dele nesses tempos, porque são três tipos de pessoas que trazem uma mensagem diferente. Porque o médico vai socorrer o preso na hora da doença, se ele tá doente; o pastor ele traz a palavra para confortar os momentos de angústia, e o professor lhe dá aspirações para que um dia você percorra outros caminhos, entre em outras... caminhe por outras veredas da vida. 

Mario: Outra pergunta, voltando um pouco à dinâmica com os livros, porque você me disse que davam para vocês uma cópia e vocês liam na cela e depois vocês discutiam na reunião, ou vocês liam em conjunto? Como funcionava?

Antônio: … Era de sábado.. Sábado, após a visita, após a visita tinha o encontro com as meninas e os detentos e a gente ia para sala onde hoje é o colégio, era a sala de estudos mesmo e a gente debatia. Na verdade, quando começou não tinha... Tinha só aquele espaço vazio, não tinha cadeira, não tinha nada. Tinha até os meninos que começaram primeiro lá, o Dorivan   finado Dorivan, que Deus o tenha, faleceu —,  o João Batista… eles diziam que eles começaram no chão, que sentavam em roda no chão, que não tinha assento. Quando eu adentrei já estava mais estruturado, já tinha cadeira, chegou a não dar para todos, mas foi se estabelecendo.  

Mario: Aí então vocês liam e depois discutiam nesse espaço... imagino que as meninas colocavam algumas perguntas ou vocês também já iam falando o que gostaram no texto?

Antônio: Elas sempre davam a contribuição delas, elas que faziam a correção e tudo das resenhas, era o trabalho delas. 

Mario: Ah, porque vocês chegavam já com as resenhas escritas?

Antônio: Não, a gente escrevia na roda  

Mario: ...depois de discutir o texto?

Antônio: Isso, eram quatro encontros. Eram três para debater o assunto e um de escrita.

Mario: No documentário do Projeto Andorinhas que publicamos na nossa entrada passada você faz um comentário que chamou muito nossa atenção. Tem a ver com isso que você já mencionou de que o sistema não só aprisiona fisicamente, impede o ir e vir, mas também o pensamento, ele vai aprisionar a liberdade de pensamento… 

Antônio: A ordem do sistema, o sistema carcerário em comum, pode ser aqui no Brasil, em qualquer lugar, é subjugar o ser humano. É oprimir. Ele não tem uma temática que libere o ser humano a pensar além daquilo que é proposto pelo próprio sistema. Então, o que é que o sistema propõe? Obediência, obediência e obediência. O sistema carcerário pra você ser considerado um bom preso, a única coisa que você deve fazer é obedecer. E quando eu digo que o sistema aprisiona o pensamento do ser humano é pela... pelo contexto geral. Aqui, onde eu fiquei, o modo de oprimir era menos duro, mas se você adentrar um presídio grande às 5 da matina, o agente cai pra dentro e todo mundo tem que tá de pé, tem que tá de cabeça baixa no chão… Aquele lugar diminui a cada dia mais o ser humano que você é e o ser humano que você foi um dia. Então assim, o sistema carcerário, a única coisa que ele transforma o homem é num animal. Apesar da gente já ser um animal.  (risos)

Transforma o ser humano numa fera. Você acredita que a grande maioria sai de lá e retornam pra sociedade, retornam para quê? Pra aqueles que o oprimiam. E qual é o maior desejo do oprimido? Não é se tornar aquele que lhe oprimia. É ver aquele que lhe oprimia passando pela mesma situação ou algo pior do que a que ele passou. Esse é o pensamento. Se você não tiver uma mente meio controlada, a única razão que motiva o preso a viver, ainda mais dependendo da forma que ele foi levado àquela situação, é isso, é disseminar o ódio. E isso, o projeto.. projeto de leitura, Clube dos livres, que é o projeto da Andorinhas, né, no sistema onde eu estava inserido, ele aquebrantou muito esses pensamentos dos detentos, porque a gente ia para lá, lia os livros, voltava pra cela, e passava horas e horas debatendo sobre aquele tema... mudou a rotina da cadeia. Neguinho já não ficava mais falando quando eu sair vou acertar com fulano, acertar com ciclano. Quando eu sair vou roubar o banco tal, né? Quebrou mais assim o que era o dia a dia no sistema.


Mario:  Quantas pessoas participavam do projeto? Havia uma irradiação às pessoas que não estavam participando? Dava para incluir, discutir ideias com pessoas que não faziam parte do projeto?

Antônio: Dava sim. Dava para discutir, até, às vezes tinha uma cela que só tinha um que estava participando do projeto, mas como ele chegava falando sobre o livro e tal, como foi a atividade lá fora, aquilo ia envolvendo o restante. Então quando chegava o final de semana, iam perguntar: “Aline, ainda tem vaga?”. Quando eu saí a gente estava em 22 parece, de 18 pra frente os que estavam permanente mesmo, todo final de semana, porque o espaço é pequeno e não tinha vaga pra agrupar mais gente. 

Mario: Tinha mais interessados mas não dava para agrupar mais gente?

Antônio: Não dava, não cabia mais por causa do espaço que tinha.

Mario: Quantas pessoas tem reclusas lá.. ou tinha.. nesse momento?, você sabe mais ou menos?

Antônio: Rapaz.. quando eu saí... quando eu entrei tinha mais, tinha além da capacidade, tinha duas vezes a capacidade. Mas quando eu saí não… A capacidade lá era para 45... 6 pessoas por cela. Tinha capacidade para 40 pessoas, e tinha umas 60. Deu uma aliviada boa.

Mario: É um presídio pequeno então, né, agora que você me falou os números…

Antônio: É pequeno. O presídio é pequeno. Aí agora Aline tá se estendendo a um presídio bem maior. Ela está vendo se implanta esse mesmo projeto para o presídio Barra da Grota.

Mario: Que já é um presídio grande, então?

Antônio: Grande, lá já é grande. Hoje é para ter uns 300 ou 400 homens. 

Mario: Talvez em parte o projeto conseguiu desenvolver tanta coisa por ser um espaço menor, às vezes é mais difícil nos espaços muito grandes, mas é obvio que esse projeto deveria ser também desenvolvido em outros espaços. 

Antônio: É... Aline está tentando, né. Que ele chegue a outros cárceres do Estado. E fora também, né, porque ela disseminou bem, espalhou bem a ideia, tanto que espalhou que a gente tá nessa conversa. 

Mario: Verdade, o projeto tem dado bons frutos. E outra pergunta, que tinha a ver com isso que você mencionou de você ser um pouco mais na sua.  Como é a situação agora, você está mais interessado em continuar com trabalhos mais coletivos, ou, agora que você está fora, está mais de novo na sua?

Antônio: É, eu gosto de estar mais só, não gosto muito... Como eu falei um dia para a Aline eu não gosto muito de gente. Porque eu gosto de estar sozinho, a solidão me conforta e eu acho bom ficar só. Acostumei comigo mesmo. Morei alguns anos sozinho. Tem dias aqui em casa que eu digo pra minha irmã que eu to pra ficar louco das ideias... a gente vai correr pro mato e aí já vem te chamando. Mas é bom, é bom a convivência, com pessoas diferentes, porque cada ser humano tem seu ponto de vista, sua ideia, mas é bom, a gente estuda, debate, às vezes discute, um concorda o outro não com a posição de cada um, aí vai vivendo. É o que eu estava conversando ontem com a Aline, e estava reparando que eu to ficando louco com uma ideia de adentrar a universidade agora. Esse ano se voltar presencial eu não vou dar conta desse tanto de gente pra conviver. Ela disse pra eu tentar e eu disse vamos ver. É porque eu sou bicho do mato. Eu gosto do mato, gosto da roça, moro na roça, gosto de estar no mato.

Mario: Mas no momento do projeto, da troca de ideias você também curtiu, digamos assim…

Antônio: Foi bom, foi uma experiência boa

Mario: E se você agora estuda Educação no Campo de alguma forma quer continuar debatendo também…

Antônio: É, porque essa coisa que a gente está falando, trabalha muito na área de projetos sociais e grupos sociais igual o MST e tal, eu falei vou sair do curso apaixonado por MST, tá difícil... (risos)

Mario: E você pensou alguma vez voltar a participar do projeto Andorinhas estando de fora? Digamos ir ao presídio participar lá do Andorinhas? Ou isso não é do seu interesse?

Antônio: Se houver oportunidade... porque o ex-preso é complicado ele regressar ao sistema carcerário mesmo sendo levado por um projeto, é muito complicado ele adentrar o presídio, mas se tiver oportunidade e eu puder contribuir com eles é só ligar. Tenho amigos lá, amigos que participaram ainda hoje estão lá, tenho amigos que eu fiz lá dentro, então se eu puder contribuir com a melhora pra eles não medirei esforços para estar lá.

Mario: Você pode falar um pouco de como tem sido a experiência de sair? Queria saber se você continua em contato com as pessoas do grupo Andorinhas, se tem algum apoio também fora. Porque a gente sabe que sair é difícil e às vezes o apoio que tinha lá dentro nem sempre continua fora, então não sei como se dá no seu caso.

Antônio: Tenho contato sim, tenho contato com a Aline, com algumas das meninas, as que não foram embora, tem algumas que terminou o curso e foram embora, outras casaram, se divorciaram, mas tenho contato. Tenho contato com a professora do ensino fundamental, professora Walderice, uma amiga em particular, briga comigo até hoje. Tenho contato até hoje com alguns ex-presos que participavam. Com familiares de alguns deles que eu não conhecia e tenho contato até hoje... E a saída... eu achei que a recepção aqui fora ia ser mais hostil, mas não foi aquilo que eu pensava não, foi bem aprazível, apesar dos pesares. 

[A respeito da experiência da saída do presídio, Antônio escreveu o texto que compartilhamos em baixo] 

Mario: Para finalizar, você gostaria de acrescentar mais alguma coisa?

Antônio: Uma coisa que eu quero comentar é só agradecer a Aline e as meninas e os parceiros que aderiram ao projeto - Ministério Público aderiu ao projeto, o judiciário aderiu ao projeto, a Chão Editora aderiu ao projeto. Os lugares por onde Aline passou fazendo a divulgação do projeto e aceitaram bem. Também gostaria de agradecer à professora Walderice. E agradecer a você pela oportunidade de contar um pouco de mim. A vida é complexa mas as barreiras da vida têm que ir quebrando pra amanhã ser um pouco melhor.

Mario: Eu também agradeço sempre acho que todos que fazemos esses projetos percebemos e experimentamos o quanto a gente aprende uns com os outros e outras. 

Antônio: outra coisa que esqueci de comentar é que eu, Denisvan e o Gilson Luís que são mais dois meninos que estão nesse projeto, todos os dois têm participação no Andorinhas também, estamos contribuindo com o doutorado da Aline.

Mario: Ótimo, eu quero ler depois o texto quando estiver pronto, o do doutorado, também para ver.

Antônio: Também estou ansioso para ver como vai ficar.



 Entre pássaros, cegos e respiração: um viver pós-prisão

Antônio Pereira da Silva [1]

   Olá Senhores e Senhoras, aqui quem vos fala é Antônio Pereira da Silva, um ex-detento da Cadeia Pública de Tocantinópolis. A menos de um mês que estou em liberdade. Já tinha sentido várias emoções, mas a de estar livre acredito que vou morrer e nunca mais sentirei algo assim na minha vida. Toda aquela angústia, aquele desespero que estava consumindo o ser humano que eu era, passou. Como se fosse um passe de mágica. Porque só quem passou pode descrever como é maravilhoso estar livre outra vez.

    Quando coloquei meus pés daquela porta para fora senti-me como um passarinho que escapa da gaiola. A primeira coisa que faz é sacudir as asas numa árvore e cantar como se dissesse “estou de volta em casa”. Não cantei, mas suspirei por várias vezes. Um turbilhão de coisas tomou conta de mim e foi ali que recomecei a viver outra vez. E, senhores, não é fácil regressar a uma sociedade que nos quer fora dela. Mas não está sendo tão ruim como eu pensei que seria. Muitas pessoas olham para mim com desconfiança, mas não falam nada. Outras vem perguntar se eu estava viajando, ironizando na verdade. Outros viram a cara ou abaixam a cabeça para não olhar em meus olhos. E, ainda, alguns demonstram que têm um pouco de medo. Mas dou bom dia a todos e abro um sorriso, para mostrar que não sou um monstro, apenas uma pessoa que está feliz, mesmo depois de ter estado nos braços da morte por mais de dois anos. Porque era assim que eu me sentia lá dentro daquela cela.

    Dias atrás, pela primeira vez após ter saído da cadeia, estive em um lugar com várias pessoas. Descobri que tem outras pessoas que esta sociedade olha com mais receio do que para mim. Chegou um jovem de apenas 18 anos no lugar que eu estava, todos pararam para olhar como ele é muito bonito, mas ao mesmo tempo, tão mal visto. Alguns passaram a trocar olhares, fizeram boca de rir. Ele entrava e saia e todos o seguiam com os olhos desconfiados, porque seu mal hábito de roubar causa medo em muitas pessoas. Foi aí que parei alguns instantes e parei para analisar: como um homem pode reescrever a sua história?

    Uma pessoa que não passou pela experiência de estar preso não pode explicar como é viver dentro de uma prisão, assim como não é possível que uma pessoa que nasceu cega saiba como é viver enxergando. Podemos, contudo, dar a ela um norte de como as coisas são em seu real estado, ensinando a reconhecê-las pelo toque, fazendo de suas mãos seus olhos.

    Como alguém que está trancafiado pode viver senão através dos pensamentos que tem na cabeça? Com a Secretaria de Educação, por meio das escolas ligadas a ela, foi possível trazer conhecimento para aqueles que estavam esquecidos. Também com o projeto de extensão da UFT, aqueles, como eu, puderam viajar em um universo que só a imaginação é capaz de alcançar. Porque quando estamos lendo um bom livro, viajamos e isso nos liberta, mesmo que em pensamentos.

    A leitura transforma as concepções de vida. Não vou dizer que todos, mas de maneira em geral. Duvidar que alguém viaja através de uma boa história e fica preso dentro de pequenas falas, duvidar que as atividades escolares e o projeto de leitura são de suma importância para a vida das pessoas privadas de liberdade, é duvidar que a respiração nos mantém vivos. Mas, como tudo na vida, tem ainda aqueles que relutam em participar das atividades que a unidade disponibiliza visando um retorno menos conturbado à sociedade.

    Deus foi, e sempre será, meu único conforto e refúgio. Obrigado a todos aqueles que tiraram um tempo de sua vida para olhar para mim e para todos os que estão presos, meu muito obrigado.  A escola e os professores, as meninas do projeto de extensão da UFT, sem vocês eu nunca teria conseguido estar aqui, como estou, sob a proteção de Deus e nos braços de minha mãe, que é a mulher mais maravilhosa, que eu amo muito.

    Professora Aline, Roberto e Walderice, é com muita alegria que escrevo estas simples palavras para agradecer o que vocês fizeram por mim e ainda fazem, porque quando o desânimo vem, lembro de vocês, dos conselhos e das brigas incessantes que todos travaram comigo para eu escrever com mais qualidade. Não me canso de agradecer por tudo. Obrigado. Vocês têm um lugar cativo em meu coração.

[1Egresso do Sistema Prisional. Participava do Ensino Escolar e do Clube dos Livres. Concluiu o Ensino Fundamental e o Ensino Médio pelo ENCCEJA. Tem uma cara de bravo, mas é um doce. Sua caligrafia sempre nos deu muito trabalho, que era recompensado pela satisfação em ler suas reflexões escritas. Tornou-se o “filósofo” da turma, sempre trazendo pontos de vistas diferentes e polêmicos para os debates. Em 2020, livre, inscreveu-se por conta própria no ENEM.