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Acima apresentamos um mapeamento alguns dos diversos projetos artísticos que desenvolvem atividades nos cárceres d'América Latina. Cada projeto está assinalado com um 🕮 e as homenagens com uma ★. Para ampliar a região clique ➕ e para diminuir clique ➖

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Projeto Andorinhas em Tocantinópolis-TO

O Projeto Andorinhas trouxe grandes mudanças para o contexto prisional em que surgiu, o município de Tocantinópolis, no Norte do Brasil. Funciona sob a coordenação de Aline Campos, que explica no texto de apresentação que disponibilizamos abaixo seu funcionamento, além de contar a trajetória do projeto até hoje. Além desse texto e antes dele, x leitxr vai encontrar o curta "Projeto Andorinhas. Ações educativas na casa de prisão provisória de Tocantinópolis/TO", legendado para o espanhol por nós, onde as participantes alunas da Universidade do Tocantins, bem como os participantes em privação de liberdade e trabalhadorxs do sistema penal  falam de sua experiência  no projeto e das reverberações que ele teve em seus próprios universos particulares.



UMA ANDORINHA SÓ NÃO FAZ VERÃO

Por Aline Campos


Projeto Andorinhas é o nome que demos ao conjunto de ações educativas que vem sendo desenvolvidas na Unidade Penal de Tocantinópolis, no Tocantins. Como o nome sugere, o projeto surge da junção de várias andorinhas e em alusão a sabedoria popular que ensina que “uma andorinha só não faz verão”.

Sempre que nos propomos a falar sobre quem somos (ou nos tornamos?) e o que fazemos somos chamadas a olhar para nossa história (como somos majoritariamente formadas por um grupo de educadoras mulheres, optamos por usar o gênero feminino para nos designar neste texto). Ao voltar nossas vistas para o passado, vemos que somos fruto de uma semente que encontrou terra fértil para germinar e se desenvolver. É difícil precisar a composição dessa terra que nos acolheu, deu sustentação e nutriu. Tampouco sabemos até quando (ou se) sobreviveremos a estiagem-Covid-19 que nos assola. Seguimos resistindo, enquanto temos força.


Shara Rezende/Governo do Tocantins

Nascemos em Tocantinópolis, um município com cerca de 23 mil habitantes, localizado no extremo norte do Tocantins, numa região conhecida como “Bico do papagaio”.  Fomos fecundadas pela extensão universitária, a partir da aproximação entre a Universidade Federal do Tocantins (UFT) – atualmente em transição para Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT) –  e a Unidade Penal de Tocantinópolis. No princípio, na unidade havia apenas uma sala vazia destinada à oferta de atividades educativas e uma gestão entusiasmada. Pode parecer pouco, mas tratando-se de contexto prisional era muitíssimo. Na universidade, por sua vez, havia uma docente com experiência na educação em prisões e algumas discentes dispostas a se aventurarem nesse contexto como nova possibilidade de vivência formativa. Assim começamos a tentar aprender a voar...

Era junho de 2017 quando a primeira atividade educativa extensionista foi proposta: oficinas experimentais de leitura e escrita. Sentávamos em roda, no chão, junto com 12 homens presos que se interessaram em participar do projeto. Levávamos semanalmente materiais para leitura, a partir dos quais eram desencadeadas nossas conversas que culminavam, ao final de cada encontro, numa proposta de escrita.

Ainda em 2017 nossas ações chegaram ao conhecimento do promotor de justiça que passou a nos apoiar e fortalecer. Novas instituições foram acionadas e as parcerias ampliadas. O espaço inicialmente vazio foi sendo cuidadosamente organizado e preenchido com mobília e livros arrecadados por meio de campanha de doação. 

Uma vez estruturado o espaço, em fevereiro de 2018 teve início a educação escolar, ofertada pela Secretaria Estadual de Educação, Juventude e Esportes. Nesse momento em que as ações educativas são ampliadas na unidade, encerramos as oficinas experimentais e passamos a atuar na promoção de um Clube de Leitura, que posteriormente passou a ser conhecido como Clube dos Livres. Essa reorganização de nossas ações foi motivada pelo desejo da população carcerária em ser contemplada com a Remição de Pena por Leitura (RPL). Nesta época, o documento orientador que existia era a recomendação nº 44 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e foi com base nela que reestruturamos o projeto. Hoje há a Resolução nº391 do CNJ, que regula a remição de pena não apenas por leitura, mas também para as demais práticas sociais educativas não-escolares.


Universidade Federal do Tocantins


Respeitando a normativa, sempre lemos um livro por mês. Porém, as escolhas das obras a serem lidas, bem como a forma como realizávamos a leitura foram alteradas conforme ouvíamos e dialogávamos com os homens presos participantes do projeto e aprendíamos mais sobre as especificidades da unidade em que atuamos. Justamente por acreditar na importância do diálogo na construção de ações educativas, e saber da transitoriedade característica da população carcerária nos contextos prisionais, optamos por organizar o projeto em módulos semestrais. Desse modo, a cada seis meses temos a oportunidade de avaliar coletivamente o andamento de nossa ação extensionista e reformulá-la de acordo com os interesses de todas as pessoas que fazem parte dela. 

No final de 2018 conseguimos escrever dois participantes do projeto que já tinham o Ensino Médio completo num processo seletivo para Ensino Superior EaD na UFT. Ambos foram aprovados e assim as ações educativas na unidade se ampliaram mais. No início de 2020, quando a Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Tocantinópolis passou a ofertar o Ensino Fundamental I na unidade, chegamos a garantia de acesso à educação em todos os níveis formais e com oferta de atividades também não – formal, por meio da extensão universitária. A junção de todas essas ações educativas são as andorinhas anunciando um novo verão para essa prisão em específico. 

    Voávamos muito bem. Além da realização das diversas ações educativas, publicamos em 2020, com o apoio do Poder Judiciário, dois livros sobre nossa experiência, nos quais temos textos escritos por muitas de nossas andorinhas. Infelizmente, subitamente tudo teve que ser suspendido por conta da pandemia de Covid-19, em março de 2020.  A situação era completamente atípica e não sabíamos a que alternativa recorrer. Foram dois meses sem nenhuma atividade, até que a irmã de um dos participantes do projeto nos procurou pedindo que fizéssemos algo, que não os deixássemos ainda mais isolados e sem comunicação e interação com a sociedade extramuros. O que poderíamos fazer? 

A verdade é que não tínhamos a menor ideia ou experiência com a educação à distância e/ou remota, sobretudo em prisões onde os limites são sempre maiores. O desafio estava posto. Nossa primeira ação para não sucumbir diante dos tamanhos fechamentos ao acesso à população carcerária a que nos vimos ter que aceitar por questão de saúde e ordem sanitária foram as Bibliotecas Ambulantes. Inspiradas nas ideias do escritor e educador argentino Carlos Ríos, confeccionávamos semanalmente atividades de leitura que colocávamos em caixas de leite para serem enviadas ao interior das celas, juntamente com propostas de produção escrita. Assim fizemos entre maio a outubro de 2020, até que tivemos que suspender nossas atividades novamente, dessa vez por conta de uma greve dos Policiais Penais por direitos trabalhistas.

Autorizaram a retomada de nossas atividades em novembro de 2020, mas estávamos cansadas de um ano emocionalmente devastador: o primeiro ano da pandemia de Covid-19. Faltava-nos força para retomar o trabalho de elaborar, semanalmente, atividades. Era só mais um mês, mas parecia uma vida toda. Estávamos entre nosso cansaço psicológico e nosso comprometimento com a educação. Para respeitarmos nossos limites, sem abrir mão da continuidade da oferta de ações educativas, convidamos mais pessoas para se juntarem a nós. Nasce, assim, a primeira versão de nossa atuação educativa envolvendo cartas: o Entre-nós: caderno-presente.


Projeto Andorinhas/Youtube


O ano de 2020 nos aproximou da experiência do encarceramento, ao nos impor a necessidade do isolamento em nossas moradias. Nossas interações sociais deram-se, sobretudo, de modo virtual. Diferente de nós, as pessoas presas vivenciaram o verdadeiro isolamento social, ficando em grande medida incomunicáveis com a sociedade extramuros. Diante dessa realidade, pareceu-nos especialmente oportuno convidar pessoas diversas para escrevem cartas para a população carcerária contando-lhes sobre suas experiências pessoais de isolamento durante o ano de 2020. Apostávamos simultaneamente na oportunidade de um olhar mais sensível para a experiência de estar preso, e na potência das cartas como veículo de comunicação. 

No curto prazo de uma semana conseguimos reunir 64 cartas, que juntas formaram o que denominamos de caderno-presente, uma espécie de livreto que confeccionamos aos participantes do projeto como material de leitura para o último mês do ano. 

A experiência foi tão positiva que a partir dela e com a parceria da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) elaboramos um projeto de troca de cartas entre homens presos em Tocantinópolis e em uma unidade penal de João Pessoa, na Paraíba, e pessoas não presas: o Entre-nós: cartas, palavras e escritas. Com esse projeto, elaboramos mensalmente um livreto com materiais diversos para leitura a partir de uma temática previamente definida e mediamos a troca de cartas entre as pessoas que participam do projeto, que dialogam sobre as temáticas a partir do livreto e suas experiências de vida. 

O primeiro módulo do Entre-nós ocorreu entre março e agosto de 2021, envolvendo 50 pessoas presas (correspondentes intramuros) e 25 pessoas não presas de diversos estados do país (correspondentes extramuros). Após a conclusão dessa primeira experiência e a realização de uma avaliação coletiva, a proposta foi melhorada e ampliada dando origem ao segundo módulo, iniciado em outubro e com previsão de conclusão para dezembro de 2021. Nesta segunda edição, o projeto conta com a participação de 25 correspondentes intramuros de João Pessoa, 31 correspondentes intramuros de Tocantinópolis e 56 correspondentes extramuros.

Em tempos cada vez mais virtuais e acelerados, nossas ações educativas em prisões resistem aos fechamentos e retrocessos valendo-se de cartas porque, como escreveu André Comte-Sponville², escrevemos uma carta:

Para habitar juntos a essencial solidão, a essencial separação, a essencial e comum fragilidade. Para descrever o tempo que está fazendo, o tempo que está passando. Para contar o que nos tornamos, o que somos, o que esperamos. Para exprimir a distância, sem a suprimir. O silêncio, sem o corromper. O eu, sem se fechar nele. Isso não substitui a fala. Isso não substitui nada. E nada, tampouco, o substitui: as verdadeiras cartas, aquelas que gostamos de receber, são gratuitas e insubstituíveis, como a vida, como o amor, como um presente, e são um presente, “Não é nada, sou eu”, escreve-me um amigo, “venho dizer-te que te amo muito, muito...” Não é nada, ou quase nada, e contudo um pedaço do mundo e da alma, transmitido como que por milagre, tão leve na mão, tão profundo no coração, tão próximo na grande distância. (COMTE-SPONVILLE, André. Bom Dia, Angústia! Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. Martins Fontes: São Paulo, 1997. p. 43-44.)


Neste contexto histórico que atravessamos, é disso que precisamos... nós e as pessoas que estão presas.






quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Entrevista com José Zuleta Ortiz, do programa Libertad Bajo Palabra

    Nossa última publicação trouxe o relato “Despertar”, de Karina Espinoza, participante do projeto Libertad Bajo Palabra [Liberdade sob Palavra]. Com o intuito de dar a conhecer mais sobre o projeto que tornou possível trabalhos como o de Karina disponibilizamos na presente entrada uma entrevista com o seu idealizador e coordenador José Zuleta Ortiz. A entrevista foi realizada por Yury Magnory Ariza Puentes no ano de 2010 e publicada originalmente na Revista S, da Universidad Industrial de Santander. A parte da entrevista que compartilhamos é a segunda, porque é nela que Zuleta fala do seu trabalho com escrita e, por consequência, de leitura, em presídios da Colômbia.


 Foto: Bernardo Peña / El País


Libertad Bajo Palabra [liberdade sob palavra], como no livro de Octavio Paz, é o nome do programa do Ministério de Cultura da Colômbia dedicado a desenvolver oficinas de escrita literária nos presídios do país. Esse projeto, ligado à Red Nacional de Talleres de Escritura Creativa [Rede nacional de oficinas de escrita criativa] RENATA, pretende promover a leitura entre a população carcerária do país, transformar a escrita em uma ferramenta a serviço da liberdade e fazer da literatura uma janela para ver e se ver além da prisão. No âmbito do recital de poesia organizado no Cárcere Modelo de Bucaramanga, no qual os reclusos do estabelecimento tiveram a oportunidade de ler suas criações artísticas e cuja organização esteve sob o comando de El Jardín de la Poesía, programa cultural da Direção de Comunicações e da Direção Cultural da Universidade Industrial de Santander, continuamos conversando com José Zuleta Ortiz que [...] desempenha o papel de coordenador nacional do programa Libertad Bajo Palabra, desde o ano de 2005, quando o projeto foi colocado em prática.

 

ARIZA: José, gostaria que você contasse um pouco sobre como surgiram e como vêm sendo desenvolvidas as oficinas de escrita Libertad Bajo Palabra nas prisões do país.

 

ZULETA: As oficinas nasceram em Cali, em 2005. Nós fizemos um festival de poesia e um dos espaços onde faríamos as leituras era o presídio de Cali. Fomos realizar a leitura e, quando chegamos ao pátio, porque não foi num espaço especial, digamos, e sim em um pátio, muitos dos internos quiseram ler; muitos tinham em mãos, debaixo do braço, seus textos e queriam lê-los. Eu sugeri aos companheiros com quem faríamos o recital que invertêssemos os papéis e que deixássemos eles recitarem. Foi difícil convencê-los, porque os poetas geralmente são muito amigos do microfone; têm uns egos muito poderosos e nunca desperdiçam a oportunidade de cantar quando há um palco; mas, finalmente concordaram e ficamos muito surpresos com o recital que escutamos e com as coisas que essas pessoas escreveram. Na saída perguntei à diretora da unidade educativa desse presídio se eles tinham algum curso de escrita, e ela disse que não, que tinha muita gente que escrevia nos presídios, porque ela esteve em outros também; mas que não existiam programas de escrita para os reclusos, isso não existia, que ali existiam programas de pintura, de música e outras coisas, mas de escrita não, que as pessoas que gostavam de escrever, escreviam por ali, existiam algumas bibliotecas em alguns cárceres e havia alguns leitores, que liam lá, mas não existiam programas de escrita. Nesse momento, perguntei à diretora dessa unidade se poderíamos realizar oficinas de escrita com as pessoas que quisessem participar e ela disse que claro, que não tinha problema algum e assim nasceu o Libertad Bajo Palabra. Depois levamos as oficinas ao presídio feminino. Isso começou no presídio masculino de Cali e logo levamos para o feminino, e depois realizamos em ambos. Com o tempo, bem, começou a crescer. Na Red Nacional de Talleristas (RENATA), tomaram conhecimento do projeto e me convidaram a realizá-lo em outros lugares. Depois realizamos em seis cárceres. Posteriormente, em dez. Agora o realizamos em dezessete.

 

ARIZA: Desde 2005?

 

ZULETA: Sim. Começamos em 2005. Estamos já há 5 anos trabalhando.

 

ARIZA: Na mesma entrevista do jornal El Espectador mencionada na primeira parte dessa entrevista, você dizia que as prisões chamam sua atenção, porque nelas se torna realidade o que fora é ficção. Queria que você ampliasse um pouco essa ideia e que nos contasse como um ambiente tão duro quanto o cárcere pode se transformar em um canteiro de histórias e como escrever pode ser, para um indivíduo privado de liberdade, uma maneira de ver mais além dos muros e das grades.

 

ZULETA: Bom, o que eu dizia na entrevista era que o que fora é ficção, dentro é realidade...

 

ARIZA: ... exatamente.

 

ZULETA: Quando eu comecei a ter contato com os escritores privados de liberdade, me dei conta de que muitos deles tinham interesse em contar o que tinha acontecido com eles, ou seja, de fazer crônicas da vida e de contar sua história, e acredito que 70% dos trabalhos sendo produzidos nos presídios têm a ver com histórias de vida, muitas delas histórias autobiográficas, biográficas e outras. Há nisso uma coisa muito importante, que é a pulsão de escrever. Digamos que os escritores não são escritores por esforço, os verdadeiros escritores, o são porque necessitam escrever de uma maneira visceral, vital, para poder viver. Nos cárceres, as pessoas que escrevem têm esse impulso de necessidade, necessidade vital; não é uma pose, não é uma pose intelectual. Certamente muitos deles escrevem não para mostrar para alguém, mas simplesmente para pensar a si mesmo, se indagar, porque precisam e estão longe de qualquer pretensão de publicação ou reconhecimento, simplesmente têm uma relação com a escrita muito poderosa, que também é de confrontação humana, que finalmente é o que é um escritor: a escrita é um instrumento para que um escritor confronte sua vida e confronte seu entorno e confronte o mundo em que vive. Isso se dá nos cárceres, certamente, nas pessoas que livremente querem escrever, porque essa é uma das coisas desse programa, as pessoas que participam do programa não têm remição, não existe nenhum tipo de contrapartida, não lhes prometemos nada; elas participam porque querem. Então existe aí um ganho, aí tem uma coisa interessante. Evidentemente, existem muitas pessoas que vão às oficinas e não querem compartilhar o que escrevem, simplesmente vão para saber como são as oficinas e como é, de que tratam e o que acontece ali, e continuam escrevendo, mas sem compartilhar o que escrevem, porque escrevem para elas mesmas, e nós damos essa liberdade: as pessoas que não querem mostrar o que fazem não precisam mostrar. Se querem mostrar para mim, ou se querem mostrar para a pessoa que está encarregada da oficina, podem mostrar; se querem compartilhar com outras pessoas, também podem fazê-lo; se querem submeter algo para publicar, também podem ou não fazer isso; se querem assinar ou não; se querem assinar com pseudônimos ou sem pseudônimos. E assim foi até agora; há obras que foram apresentadas sem um pseudônimo, anonimamente; há outras que foram apresentadas com pseudônimos e existem outras assinadas com nome e dois sobrenomes.

 

ARIZA: De certa forma, vocês se tornam confessores, se eles decidem, por exemplo, que apenas o instrutor da oficina leia o que escreveram.

 

ZULETA: Não sei se essa é a palavra mais indicada; mas, em alguns casos, tem pessoas que trabalharam com coisas muito duras e coisas que envolvem crimes, muito delicadas além de tudo, e foram capazes de trabalhá-las literariamente e, certamente, temem compartilhar isso, porque as envolve, envolve outras pessoas. Existem escritores que foram capazes de falar com nomes próprios a todo momento, como se fosse uma biografia, com nomes reais, com lugares reais, com datas reais, cenários reais..., então, certamente, existem coisas que são muito delicadas e que em alguns casos eles só compartilham com o instrutor da oficina ou nem sequer compartilham. Mas nós não temos nenhuma pretensão de ser redentores deles; o programa não tem nenhuma intenção de produzir algum efeito terapêutico, produzir mudanças, não tem nenhum propósito dessa índole no programa; o programa é um programa somente para escrever e não oferecemos e nem esperamos nada, nem fazemos avaliações de antes e depois, nada. Os cárceres têm algumas unidades de desenvolvimento e tratamento onde intervêm muitos psicólogos, e eles não têm nada a ver com o programa; o programa é alheio a isso. Agora, se um escritor quer ir ao psicólogo e ler o que escreveu, isso é problema desse escritor, mas o programa não tem nada a ver com isso, não existe nenhum propósito de correção, de que eles encontrem alguma maneira de se reconstruir, não: não é para isso que serve a escrita; para isso serve a religião, para isso serve a psicologia, para isso servem outras coisas. A literatura, ao contrário, é para se confrontar, não para se redimir.

 

ARIZA: Conte-nos em que medida as oficinas Libertad bajo palabra revelam uma radiografia desse país, do que é a Colômbia.

 

ZULETA: Bom, os presídios são um espelho do país. A sociedade colombiana está toda representada nos presídios; existem nos cárceres de cada região da Colômbia políticos, funcionários públicos, policiais, sacerdotes, professores, médicos... Entre todos os representantes da sociedade civil e da institucionalidade colombiana há presos; então é interessante ver como os cárceres são um espelho da sociedade: aí tem de tudo; acho que os cárceres têm uma condição de revelação da sociedade, de mostrar. Acredito que se alguém olha para os cárceres, olha para a sociedade que tem. Penso que é um espaço muito estigmatizado, o cárcere é um estigma e, em grande parte, a função do cárcere é estigmatizar. Ainda que existam várias doutrinas, umas que são punitivas, segundo as quais você pagará pelo que fez, vai ser castigado, como é a doutrina norte-americana dos Quakers, e existem outras doutrinas que são de ressocialização, onde você se transforma em um indivíduo apto para participar de uma sociedade, porque você é um desajustado etc., que é a do nosso país. Nós temos a ideia de que o cárcere funciona dessa forma e isso não é bem assim, esse planejamento não funciona em nenhum dos casos. O cárcere é um lugar onde não se pode ressocializar ninguém, onde, ao contrário, muita gente termina pior do que entrou, onde as pessoas que não têm condições nem formação, e em muito raras ocasiões podem, depois dessa experiência, construir uma vida diferente da que tinham. Eu tenho, dentro do vastíssimo grupo de pessoas que comparecem às oficinas, casos nos quais, por exemplo, um menino conta que começou a roubar, isso no cárcere de Acacías, no Meta¹, aos cinco anos, porque seus tios eram ladrões e seus irmãos eram ladrões, seu pai era ladrão e todo seu entorno familiar, eram todos ladrões. E ele foi colocado no meio disso, porque cabia pelos vãos das portas, grades e janelas, para que abrisse a porta das casas vazias, e ele conta que todo o seu entorno social trabalhava no mesmo negócio, que ele começou com isso aos cinco ou seis anos, porque era magrinho. Então se vê que existem algumas pessoas que nascem em determinadas circunstâncias que quase traçaram sua sina. Eu tenho, por exemplo, no cárcere de Cali, uma mulher que tinha a mãe e a filha encarceradas, ou seja, três gerações de uma mesma família, e por coisas completamente diferentes. O pai também e o irmão dela também estavam; consequentemente existem algumas coisas nos cárceres que são complexas. Mas também os políticos, os policiais, os sacerdotes abusadores estão ali, ou seja, tem de tudo: todas as condutas humanas de alguma forma terminam sendo propensas a terminar ali, e ali terminam muitas delas. Também existe uma coisa curiosa, por exemplo, nas mulheres. As mulheres são muito dadas para redimir os seres humanos. Então existem muitos casos nos quais as mães, as namoradas ou as esposas se envolvem e terminam pagando por crimes que não cometeram, que foram cometidos pelos filhos. Existem muitos casos nos quais, por exemplo, fazem uma revista em uma casa, encontram droga ou o objeto de um roubo e a mãe diz “Não, é meu, eu sou a culpada”, “Você se declara culpada?” “Sim, eu sou a culpada, me declaro culpada e vou para a prisão”. Depois, o menino acaba sendo levado ao cárcere por outra coisa e terminam os dois presos: a mãe, para salvar o filho, e o filho, porque o pegaram mais tarde em alguma outra coisa. Isso acontece muito, você nem acredita, mas eu já vi muitos casos em que mulheres, para salvar o namorado, para salvar o marido, o amante ou o filho, terminam pagando penas de delitos que não cometeram.

 

ARIZA: Você acredita que de algum modo as oficinas de escrita criativa nos cárceres contribuíram para cumprir os propósitos de formação e reinserção social da população carcerária?

 

ZULETA: Não. Eu não acredito que esse seja o propósito e eu acredito que o cárcere, como foi planejado na Colômbia, não pode produzir uma transformação nos indivíduos que entram, porque, antes de tudo, é indigno, e se alguém entra em um lugar que é indigno, não tem como se tornar digno. É indigno pelo grau de corrupção que tem; tem um grau de corrupção que parte dos que te vigiam e fazem tua guarda. O grau de corrupção na Colômbia é brutal, e a justiça é muito corrupta em todos os níveis; então em um ambiente no qual tudo ocorre ilegalmente, os mesmos processos jurídicos e judiciais, a mesma instância no lugar onde você está preso, bem, é muito difícil que esse seja um lugar de reinserção ou de recuperação. São lugares muito difíceis, onde mandam os mais fortes, os piores, mais arbitrários; os mais poderosos são os mais armados, os mais dispostos a matar, essa gente que tem o poder e que conduz as prisões. Então um sistema como o que nós temos jamais poderá redimir alguém, nem jamais poderá ser o caminho para que alguém mude de vida, ao contrário.

 

ARIZA: As oficinas nem sequer ajudam a aliviar um pouco essa situação?

 

ZULETA: As oficinas são como pequenos oásis. Nos centros de reclusão existem pessoas que se sentem muito mal dentro do centro e que não podem se adaptar, e não se adaptam, por quê?, porque elas têm dignidade, porque têm uma formação distinta, porque têm sensibilidade...., então tratam de buscar um oásis, que também têm, e geralmente são as coisas que têm a ver com a arte; por exemplo, na minha oficina existem pessoas que estão em pintura e música. Elas buscam participar de tudo que seja diferente de estar no pátio, porque no pátio vale a lei do mais forte e o pátio é terrível; o pátio tem uma lógica muito brutal, muito complexa. Esses pequenos oásis permitem que essas pessoas se entretenham e passem ali um tempo num cenário que é um pouco um oásis dentro de uma selva. É curioso que geralmente as pessoas que têm a ver com a parte dura dos pátios, do poder, do tráfico de drogas..., essas pessoas nunca estão em nada artístico, nem nada educativo, porque os centros de reclusão, devo dizer, oferecem, não todos, mas alguns, a possibilidade de que as pessoas terminem o fundamental, que terminem o ensino médio, façam um curso técnico e inclusive uma graduação. Essas pessoas que se metem nesses programas normalmente são diferentes, pessoas que não pertencem ao poder do cárcere nem dos pátios; são pessoas que estão um pouco à deriva dessa situação. Para eles, isso é uma tábua de salvação também e de conseguir estar aí, suportar o tempo em que estão aí de um jeito mais ou menos digno.

 

 Foto: Milton Ramírez


ARIZA: Quais foram as estratégias para aproximar a literatura dos reclusos? Qual é a metodologia de trabalho das oficinas?


ZULETA: Vamos ver. São dezessete oficinas e tem dezessete ou quinze pessoas, porque há alguns que orientam, conduzem duas oficinas. O programa tem apoio da RENATA, as pessoas que dão as oficinas nos cárceres são da Red Nacional de Talleres de Literatura. Nós não temos metodologia única nem idêntica em todas as oficinas. Respeitamos a metodologia de cada diretor de oficina, são diretores que já estão formados, quase todos são profissionais em literatura ou escritores; seria errado dizer para eles que a oficina deve ser de um jeito ou de outro, criar um modelo com módulos a serem seguidos e copiados. Cada diretor tem a liberdade de conduzir a oficina de acordo com suas metodologias. Mas sim, existem coisas comuns a todas as oficinas; por exemplo, existe uma relação com a leitura. A leitura, curiosamente, não é um hábito muito frequente no cárcere: é, como fora do cárcere, um hábito de poucos. Supõe-se que nas prisões há muito tempo e não é bem assim; o regime carcerário, a disciplina, todos os protocolos para comer, para a contagem pela manhã, à noite, a questão da faxina, as comissões, o não sei o quê, o jurídico... Tudo isso tira muito tempo, e sobra pouquíssimo tempo do dia para ler, e os acessos às bibliotecas são muito curtos: as pessoas podem ficar na biblioteca acredito que cerca de três horas por dia. E também não é um lugar onde é fácil ler, pela superlotação, pelo barulho, porque tem televisões ligadas a todo volume, rádios a todo volume, música, brigas, discussões, etcétera. Então não existem condições de leitura e também não existem hábitos de leitura. Criamos muitos leitores a partir da escrita; isso é uma coisa estranha, porque se supõe que seria ao contrário, e todas as teorias afirmam o contrário; mas no caso das prisões, muitas pessoas que não tinham o hábito de ler passam para a leitura porque começaram a escrever e isso é muito interessante, um fenômeno muito interessante. Para falar um pouco sobre o que fazemos: o que fazemos é que permitimos todos os gêneros; tentamos identificar a busca pessoal de cada sujeito e acompanhamos essa busca, porque os grupos são muito heterogêneos. Eu tive desde pessoas analfabetas, que não sabem nem ler nem escrever, que querem contar sua história, e também pessoas que têm doutorado; os grupos são muito heterogêneos, e não é possível usar um mesmo módulo para todos. Eu faço algumas coisas, sobretudo nos primeiros momentos das oficinas, quando vou começar um novo grupo, meio que para quebrar o gelo e conhecer o grupo. Por exemplo, faço uma oficina que se chama “O jornal”; chamo o grupo, mais ou menos de vinte pessoas, dividido em quatro grupos de cinco ou cinco de quatro pessoas, e dizemos: “Bem, vamos fazer um jornal e essa sala é a sala da redação de um jornal, o jornal é de um país imaginário, hipotético, e cada um de vocês vai dirigir uma seção específica do jornal: então vamos ter a página social, a página jurídica, a página esportiva, a página cultural, a página editorial e vamos construir um jornal e vamos colocar um nome...”. Ah! E a página de classificados, porque os classificados são muito bons para o humor, e então criamos o jornal de um país que não existe, e queremos contar quais são as notícias desse país. Essa é uma oficina que funciona porque é muito divertida, as pessoas relaxam, riem, começa também a despertar o humor, começam a imaginar coisas e funciona muito bem. Daí em diante, as pessoas estipulam um projeto de escrita em qualquer gênero, e o que nós fazemos é acompanhar esse projeto. Tem algumas pessoas que trabalham de uma maneira um pouquinho mais acadêmica; eu trabalho de uma maneira muito pessoal, com cada um deles ou cada uma delas, e digo “para mim, não interessa nem a ortografia, nem a letra bonita, nem a gramática. Para mim, não interessa nada disso; isso tudo é perfumaria, e não é para isso que viemos; aqui nós viemos narrar, contar..., essa parte da letra bonita passamos em um computador e se arruma na letra que você quiser, e a ortografia e a gramática eu corrijo, por isso, não se preocupem, isso é o de menos”. Muita gente se inibe, então a primeira coisa a dizer para eles é “Essa não é a parada, isso não tem nenhuma importância, vamos ver como se conta uma história, e o que você quer contar”; então eu os oriento assim e os acompanho em cada projeto: se são de poesia, de poesia; se são de crônica, de crônica; se querem fazer a crônica de um feito que eles conhecem, que não é próprio, também os oriento em como pesquisar, levo exemplos de crônicas, para cada um levo materiais para que olhem. Tem uma coisa que eu faço e que funciona muito: tenho uma espécie de biblioteca de textos escritos no cárcere por grandes escritores; então conto primeiro a história da personagem, quem era a personagem, porque chegou ao cárcere, personagens colombianas: Mutis, por exemplo, que esteve preso por gastar dinheiro alheio, por fraude, pois então... Tem muitos casos de escritores que escreveram no cárcere, que são grandes obras e eu leio para eles fragmentos dessas grandes obras, e então isso chama muito a atenção deles porque se identificam. Também levo material de apoio para o que estão criando, para que leiam. Por isso digo que a partir daí formamos leitores que, tentando escrever algo, começaram a ver como faziam os outros, e terminaram se tornando leitores e encontraram na leitura um prazer que não conheciam.

 

ARIZA: Muito interessante... Bom, com que obstáculos as oficinas se depararam? Quais são as maiores dificuldades que enfrentam os participantes?

 

ZULETA: Então, existem muitos tipos de dificuldades. Uma delas é o tempo, porque o tempo é muito curto, conseguimos ter efetivamente duas horas semanais de oficina; mas não mais do que isso, porque entre a entrada, a chegada nos pátios, que tragam os participantes... Tudo isso é um processo complexo. Tem outra coisa que são os traslados, a quantidade de atividades que têm, há muitas ausências porque a pessoa pode estar na área jurídica, porque está em tratamento médico, porque transferiram a pessoa, porque..., isso também é uma dificuldade. Em algumas ocasiões, porque há muitas operações de segurança, sobretudo nos cárceres de Medellín e de Cali. Não podem avisar ninguém, certamente, porque são batidas para procurar armas, para procurar drogas... Muitas vezes chegamos no presídio e não podemos dar a oficina porque estão em uma operação, então o trabalho fica perdido. E com eles, com os reclusos, não existe nenhuma dificuldade, porque como estão aí voluntariamente, têm a melhor disposição para trabalhar.

 

ARIZA: E quando uma pessoa é transferida repentinamente, como geralmente acontece -amanhece e os levam para outro lugar - o processo de escrita pode continuar?

 

ZULETA: Se no outro lugar existem oficinas, eles entram; caso não, se perde o trabalho. Às vezes eles me mandavam o trabalho e eu pude corrigir e devolver, porque foram transferidos. Isso aconteceu com um rapaz de Palmira, que foi transferido para Popayán; ele me enviou o trabalho de Popayán, eu o corrigi e enviei de volta a Popayán. Mas também existem muitos casos em que o trabalho se perde, porque a pessoa vai a outros lugares muito distantes ou não volto a saber da pessoa..., ou, bom, tem outra maneira também e essa sim é feliz: quando saem em liberdade.

 

ARIZA: Ah. Claro, maravilhoso... Falemos de uma história e de um texto da oficina que te comoveu.

 

ZULETA: Existem muitas histórias muito comoventes, mas para mim, as histórias que eu acho mais comoventes são as mais simples; por exemplo, a história do menino, a história desse menino que conta como foi sua infância, como nasceu em um mundo onde tudo que existia era isso...

 

ARIZA: ... ladrões...

 

ZULETA: ...me chamou a atenção a história de uma mulher que se apaixonou pelo sacerdote da igreja; ele a convenceu de que o filho que ela esperava era filho de Deus, que ele era um instrumento para que ela se tornasse a nova Virgem; essa é uma história muito comovente. Ela não a escreveu, porque ela não sabia escrever, ela era analfabeta, mas era muito comovente. Tem uma história de dois primos-irmãos, em Buenaventura, que por seduzirem as meninas mais bonitas do bairro, em Pueblo Nuevo, uma delas a rainha do bairro, disseram para elas uma mentira: que eles eram os “fodões”. Eles lavavam os carros de alguns mafiosos de Buenaventura e por isso andavam nesses carros, certamente porque eram eles que os lavavam e saíam para fazer pequenos serviços como mensageiros de uns mafiosos. Então eles andavam nesses carros e diziam mentiras, diziam que eles eram uns “fodões”, e ao assumir essa mentira começaram a viver uma vida dupla, essa mentira começou a crescer e se tornar outra forma de realidade, a tal ponto que isso terminou com um crime. É a história de como uma mentira se torna verdade, essa é uma história muito comovente, muito estranha.


ARIZA: Foram feitas publicações a partir dos textos produzidos nas oficinas?


ZULETA: Sim. Fizemos dois livros e estamos fazendo o terceiro. O primeiro se chamou “Libertad bajo palabra”, que coletou os melhores trabalhos das oficinas de Cali, de homens e mulheres. O segundo livro se chama “Fugas de tinta”, que tem uma seleção de trabalhos de seis centros de reclusão, e o terceiro livro, que vai ser lançado agorinha dia 12 de agosto na Feira do Livro de Bogotá: “Fugas de tinta II”, que tem trabalhos de quinze cárceres; em conclusão, fizemos três livros².


ARIZA: Como a escrita consegue transformar a vida de uma pessoa reclusa no cárcere? Qual é a experiência que eles contaram a respeito?


ZULETA: Bom. Em alguns casos sim existiu, a partir da escrita, uma transformação. Mas, em termos gerais, nós não podemos medir isso; tudo que sabemos é que para eles, escrever é fundamental. Conheço um caso em que uma pessoa entrou em uma oficina para poder escrever uma carta para seus filhos e contar para eles porque estava ali, e isso foi o motivo fundamental. Ele finalmente pôde escrever sua carta, e foi isso…


ARIZA: … se libertou… 


ZULETA: … Se libertou. Outras pessoas se tornaram escritoras; já têm vários livros escritos. Mas não podemos dizer em termos gerais, porque esses são episódios que num grupo de cem pessoas, ocorreram três ou quatro vezes; ou seja, essa não é a tendência. Nós não medimos o que acontece, não temos esse tipo de preocupação, mas sim sabemos que existe muito talento e nesses livros é evidente esse talento. Chama muito a atenção encontrar verdadeiros escritores em lugares onde não se esperaria encontrar escritores. Uma vez, Nahum Montt, quando era diretor da RENATA, fez uma piada que era muito simpática, mas que tinha algo de verdadeiro: “Estou me preocupando muito, porque os de dentro estão escrevendo melhor que os de fora”... (risos)


ARIZA: Bom, para finalizar, como utilizamos a literatura, a arte e a cultura, em geral, para construir um país menos violento?


ZULETA: Eu acredito que essa é uma utopia. O país infelizmente é muito violento, o ser humano é um animal muito violento, e não é só no nosso país, mas sim em muitos países. Particularmente no nosso existe a característica de exercer de uma maneira excessiva a violência que todos temos dentro de nós e de ter muito poucas possibilidades de transformar essa violência em outra coisa diferente da violência. Acredito que na medida que as pessoas possam ter um mundo imaginário e fazer da imaginação um lugar, existe maior possibilidade de escapar da violência. Mas a realidade é que a sociedade que temos é uma sociedade muito pragmática, é uma sociedade na qual os valores de solidariedade, de equidade, de generosidade são praticamente considerados já defeitos humanos e não valores; temos uma sociedade com valores invertidos, aqui se premia o mais “malandro”, o mais esperto é o melhor; desde menino o pai está mostrando para o filho que deve ser esperto, que deve ascender, que deve dar empurrões e que deve se sobressair… E essa cultura triunfou e está representada em todas as ordens da vida, ou seja, os que chegam mais longe, inclusive à Presidência da República, chegam com esse método: de trapaça, de mentiras, de atalhos, de empurrões, de ser “malandros”. Inclusive existem povos que culturalmente têm isso como valor; por exemplo, o povo antioquenho. Eu me lembro de um escritor, que se chama Jesús del Corral, que tem um conto que se chama Que pase el aserrador; neste conto existe um homem que foge: um paisa que foge com um boyacense³ da guerra e eles escapam e chegam em um rio, e nesse rio encontram um lugar onde tem uma tirolesa para atravessar o rio, e do outro lado está o homem que faz com que a tirolesa funcione. Então lhe perguntam “o que é isso?”, e ele diz “Não, isso aqui é uma mina”, “e precisam de mineiros?” “Não, não precisamos de mineiros, precisamos de um serrador”; então o paisa mente e diz “Eu sou serrador”, e deixam que ele pegue a tirolesa, ele atravessa e vence na base de mentiras. O que faz Jesús del Corral é mostrar como quem vence é o “malandro”, o mentiroso, o que faz as trapaças, esse é o “malandro” e esse é o protótipo do que nós formamos: as pessoas que formamos são assim, a classe política é assim, todas as pessoas que estão no Congresso, ou 90% das pessoas que estão no Congresso e nos cargos políticos dos municípios e departamentos são esse tipo de fauna, a dos "malandros". Então as pessoas sabem muito bem isso; se esses são os que dirigem, se a fauna que nos dirige é assim, se para vencer é preciso ser assim, então sejamos todos assim, e daí para baixo todos somos assim. É uma sociedade que é violenta, que é corrupta e que é como, é quase que dirigida desde cima; os grandes exemplos sociais nos mostram que esse é o caminho, então as pessoas seguem esse caminho…


ARIZA: … Assumem que isso é o normal, que essa é a conduta regular…


ZULETA: … Que essa é a conduta regular.

 

NOTA BIOGRÁFICA DO ENTREVISTADO

José ZULETA: Ortiz [...] é criador e coordenador das oficinas de escrita criativa Libertad bajo palabra, projeto desenvolvido em dezessete cárceres do país; [...] é colaborador de suplementos culturais nos jornais El País e El Espectador, assim como fundador do Centro Literario León de Greiff (1978). Além disso, é diretor da Fundação Estanislao Zuleta e diretor da área de Literatura de Proartes. Um bogotano radicado em Cali, que escreve para contar, expiar, espiar, celebrar e agradecer.


NOTA BIOGRÁFICA DA AUTORA

Yury Magnory Ariza Puentes é advogada, formada em 2009 na Universidade Industrial de Santander; instituição na qual atualmente cursa um mestrado em semiótica e se desempenha como docente. [...] Na atualidade e dentro da linha de pesquisa Literatura colombiana do grupo de pesquisa Cultura e narração na Colômbia (Cuynaco), desenvolve uma pesquisa que tende a examinar a partir de uma perspectiva semiótica as diversas representações da justiça construídas na crônica colombiana.


Fonte: Boletín n.º 168 - Ministerio de Cultura e INPEC anuncian alianza estratégica • Otraparte.org



¹ Cárcere com a menor taxa de superlotação e de reincidência entre as 137 prisões da Colômbia e que oferece aos reclusos a possibilidade de trabalhar ao ar livre em 13 diferentes projetos produtivos. (La Colonia Agrícola de Acacías: ¿la cárcel de la paz? (semana.com))
² No momento da publicação desse post, o projeto contabiliza 12 livros. Disponíveis em: https://mincultura.gov.co/areas/artes/literatura/Paginas/Publicaciones.aspx
³ Paisa se refere a quem tem origem antioquenha, que corresponde ao departamento de Antioquia, cuja capital é Medellín. Boyacense, por sua vez, se refere aos que nascem no departamento de Boyacá, cuja capital é Tunja. 


RIZA PUENTES, Yury Magnory. “El escritor es un orfebre de su propio oro” [entrevista a José ZULETA Ortiz], en: Revista S. Bucaramanga: Universidad Industrial de Santander, vol. 4, 2010. Disponível em: https://revistas.uis.edu.co/index.php/revistaS/article/view/2045

quinta-feira, 27 de maio de 2021

"Despertar" de Karina Espinoza. Programa "Libertad Bajo Palabra" (Colômbia)

Karina Espinoza é uma mulher equatoriana que, na adolescência, decidiu se juntar à guerrilha das FARC, na Colômbia. Em 2010, aos 22 anos, foi surpreendida por um ataque do exército ao acampamento em que estava. Como resultado, perdeu a sua liberdade, uma parte de seu braço e, por um tempo, a mobilidade de suas pernas. No relato que aqui trazemos, Karina recria com grande vivacidade aquele instante terrível em que esteve próxima de morrer. O relato faz parte de um dos volumes de Fugas de Tinta, a coleção que reúne uma seleção de textos resultantes das oficinas de escrita criativa em presídios do programa “Libertad Bajo Palabra”, mantido pelo Ministério da Cultura da Colômbia.



(Fuente: Verdadabierta.com)


O projeto é até hoje coordenado pelo seu idealizador, o escritor José Zuleta Ortiz. Em 2005, ele fez parte de um grupo de escritores que visitou um presídio de mulheres na cidade de Cali para realizar oficinas literárias. Depois disso, percebendo o interesse das mulheres por contar histórias e compartilhar seus escritos, Zuleta começou a realizar por conta própria oficinas de escrita criativa que culminaram com a publicação de um livro. Tomando conhecimento desta obra, o Ministério da Cultura da Colômbia propôs a Zuleta desenvolver um programa-piloto de escrita criativa para ser replicado em cinco cidades. Assim, em 2007, teve início o programa “Libertad Bajo Palabra”. Na introdução do Guía para directores de Talleres de Escritura Creativa (2019), livro publicado com o propósito de ajudar as pessoas interessadas em realizar oficinas de escrita criativa em prisões, Zuleta afirma que “entre 2008 e 2019, o programa teve 189 oficinas de redação criativa em 41 prisões do país, com a participação de mais de 3.600 pessoas privadas de sua liberdade”. Em 2019, antes da pandemia de Covid, também apareceu o último volume publicado até agora de Fugas de Tinta, o número 12.

Nas oficinas de “Libertad Bajo Palabra”, cada participante desenvolve um projeto individual de escrita sob a orientação do coordenador da oficina. Dependendo do que for de seu interesse escrever (crônica, conto, poesia), uma série de leituras literárias lhe são apresentadas pelo coordenador como modelos ou exemplos mobilizadores. O projeto de escrita leva, assim, à leitura, fazendo com que o programa funcione também como espaço de formação de leitores.

Vale ressaltar que “Libertad Bajo Palabra” não se pauta em nenhuma ideia de “redenção” ou de “ressocialização”, por isso não mede e não projeta mudanças nos participantes. Segundo Zuleta, o projeto não pretende transformar ninguém em uma boa pessoa nem em um escritor por ofício. É certo que algumas pessoas podem se descobrir escritoras a partir do projeto, mas outras podem procurar nele apenas um lugar de refúgio ou formas de se comunicar. Além de oferecer espaço para isso, o projeto não teria mais pretensão do que apresentar um instrumento — a escrita — para que as e os paticipantes indaguem e confrontem a sua vida, o seu entorno e o mundo em que vivem.

O relato “Despertar” resulta da participação de Karina no projeto. Nele, da lembrança que faz a narradora daquele momento liminar em que ficou quase completamente destroçada, parece depender a possibilidade de dar continuidade à vida, para além da simples sobrevivência. Confrontado pelo relato, o leitor é convocado a participar desse processo de rememoração e procura por uma vida digna de ser vivida. “Despertar” apareceu no quarto volume de Fugas de Tinta, em 2012. Karina escreveu o texto no presídio El Buen Pastor, de Bogotá, na oficina a cargo de Víctor Manuel Mejía.




(Foto: capa do livro Fugas de Tinta 4)

A última notícia que encontramos sobre Karina na mídia data de 2018. Naquele momento, ela se encontrava já fora de prisão, casada e com dois filhos, lutando pelo reconhecimento por parte do Governo da Colômbia de ser uma ex-combatente de guerra deficiente. Até hoje esse Governo não cumpriu com os acordos de paz assinados com as FARC em 2016.



Despertar
Karina Espinoza

    Meus olhos saltam de alegria, anseio por uma vida nova, que busco a cada dia na profundidade do morro e na vastidão da planície. Eu me sinto atraída por sua voz inteligente, seu tratamento cheio de gentileza e de ternura com os camponeses.
    Eu os vejo entregues com amor ao trabalho e ao progresso de meu povoado. São muitos, como formigas, carregando paus sobre seus ombros, abrindo atalhos e estradas no meio da floresta e da planície. São muitos, trabalhando ombro a ombro com os camponeses, eu gosto da justiça com que tratam as coisas do cotidiano.
    Eu me vejo com roupa camuflada, com o equipamento nas costas e o fuzil na mão. E me vejo com meus olhos que abraçam o caminho com firmeza e valentia. De menina passei a ser guerrilheira. Para trás ficou o rosto envelhecido e sem esperança da minha mãe que afogou com lágrimas a minha partida.
    É o amanhecer de 9 de janeiro e se apodera de mim uma dor profunda que percorre meus ossos: desânimo, febre, dor de ideias e o mundo dá voltas até desmoronar comigo. Não tem enfermeiro e eu não tenho apetite, vou me afundar na rede com meu mal-estar. Existe vida e movimento no acampamento, barulho de facões, risadas, vozes de comando. O barraco arde em aromas e sabores que reviram meu estômago.
    Os macacos se penduram entre os galhos e enchem o acampamento com seus olhares curiosos. Uma formiga se desloca lentamente pela corda que amarra minha rede. Ela fareja e remexe de um lado para outro como quem busca o lado doce da vida.
    Penso nos olhos tristes de minha mãe, suas lágrimas escorrem pelas minhas bochechas. Eu me afundo nos meus sonhos, está escurecendo e se aproxima o guerrilheiro que me atrai: jovem, loiro, inteligente, sentimental e carinhoso. Sua mão corre pelo meu rosto e meu cabelo, minha pele se estremece, meu corpo fica molhado de desejo. Ele me diz que gosta de mim. Começamos um romance cheio de beijos e carícias. Durante a noite, ele deixa sua rede junto a minha, nos separam alguns passos, mas sinto sua respiração e adormeço tranquila como quem se sente amada. Amanhã será outro dia que promete ser mais agradável.
    Num susto eu acordo, é quase meia-noite, não consigo dormir, algo me inquieta e não me deixa penetrar com atenção nos ruídos da noite. Levanto no meio da escuridão, peço ao meu companheiro de barraca a lanterna, que era minha e eu queria tê-la comigo, não sei por que, eu a queria naquele instante.
    Volto para minha rede, é meia-noite, um ruído que surge do meio da noite me estremece. É o som de aviões e ameaças de perigo, meu coração se sobressalta e me levanto num pulo.
    Visto meu colete e minhas mãos apertam com força o fuzil que é a vida, o fuzil que eu não posso abandonar. O aviso do comandante da guarda ecoa no acampamento: “camaradas! vão bombardear!”. Tudo é confusão e cai sobre nós um estrondo infernal que estremece a terra.
    Gritos dilacerantes de angústia, desespero e dor ressoam no acampamento. A esse som se somam os gemidos dos que agonizam, o pranto e o medo dos que, como nós, não achamos um lugar para onde ir.
    O morro todo se ilumina de uma cor amarela e se apodera dos nossos corpos um calor que queima. Nesse instante a terra se agita com o estrondo infernal de outra bomba. A onda me atira ao chão. Caída, abro os olhos, tudo está cheio de luz, tento respirar com a boca entreaberta, um pau está caído sobre minha cabeça. Tenho medo de morrer, olho meu corpo e ao tentar me levantar, vejo com horror que minha mão e parte do meu braço estão pendurados e cheios de sangue.
    — Me ajudem, me ajudem, estou ferida!
    E me levanto para correr, para fugir desesperada daquele lugar. Nesse momento, outra bomba cai e sacode a terra e todas as minhas entranhas. Caio com força de boca para baixo.
    Reajo imediatamente, quero me levantar, mas minhas pernas não respondem, quero fugir para me salvar daquele inferno, me arrasto lutando pela vida. Vou rastejando no escuro, enquanto em minha mente digo: “quero viver! quero viver!”.
    Meu corpo se apega à terra e à vida, se arrasta apressadamente como uma serpente, buscando uma saída. Esbarro no corpo agonizante de um companheiro que se lamenta desesperado por sua aproximação com a morte. Sinto um terror intenso, cheio de tristeza, de raiva, de vontade de chorar e de dor.
    Continuo me arrastando, até que não consigo mais. Toma conta de mim um desespero terrível, meu corpo é possuído por um frio intenso, ardo de dor, me queimo viva e sinto no meu ser uma solidão terrível que me invade por dentro.
    Eu vou morrer, sinto uma sede horrível, anseio por uma gota d’água. Estou seca. Enrolo o pedaço de braço que está pendurado em minha camiseta, como se não quisesse perdê-lo no caminho, para que continue ligado ao meu ser.
    Amanhece e tudo se ilumina com sinalizadores lançados sobre o morro, tudo se ilumina mas meus olhos estão nublados. Não choro. O Exército se aproxima, avança, cerca o lugar.
   Tenho muito medo, acho que não vou sobreviver, que vou receber à queima roupa um tiro de misericórdia. O medo congela tudo, meu corpo parece um bobo que não obedece o movimento. Fecho os olhos esperando o pior.
    Perguntam o meu nome, me colocam em uma maca de madeira, não sei por que não veio o tiro de misericórdia. Tive sorte dessa vez.
    Eles me levam ao acampamento. Com meus olhos aterrorizados vejo a destruição das bombas de fragmentação. No povoado vejo os restos de meus camaradas.
   Corpos, ou melhor, pedaços de corpos feridos e destroçados. Lamentos, tristeza, raiva, dor e impotência. Árvores derrubadas, paus destroçados, buracos, terra, cheiro de queimado, de pólvora, de mortos.
     Senti que o mundo tinha acabado para mim, pensei nos meus queridos camaradas, no país para o qual teria dado a vida para que pudéssemos viver felizes nele. Valeu a pena, fui feliz e agora entrego essa pequena oferenda com minha vida. Meu pedaço de braço, carreguei enrolado em uma camiseta preta com a imagem do Che e a legenda: “Que a dureza desses tempos não nos faça perder jamais a ternura dos nossos corações”.
    Agora me vejo e me falta essa parte do braço e da mão: sou Karina Espinoza, estou na cadeia, aprendo de novo a caminhar e a dar passos como quando era pequena. Uso fraldas e tudo tem cheiro de remédio. Anseio pelo aroma verde da esperança que me lembra os morros da minha pátria.

Referências

“Ecuatoriana soportó bombas y reúsa sonda por necesidad”. Em: El Universo, 2018. Disponível em: https://www.eluniverso.com/noticias/2018/01/14/nota/6564834/ecuatoriana-soporto-bombas-reusa-sonda-necesidad/

ESPINOZA, Karina, "Despertar". En: Fugas de Tinta 4. Bogotá: Ministerio de Cultura da Colombia , 2012. Disponível em: <https://mincultura.gov.co/areas/artes/literatura/Paginas/Publicaciones.aspx>

PUENTES, Yury Magnory Ariza. "El escritor es un orfebre de su propio oro Entrevista a José Zuleta Ortiz". Revista S, v. 4, n. 1, 2010.

MILLÁN GUZMÁN, J. C. "Fugas de Tinta 7: la libertad toma la palabra en la Biblioteca Nacional", 25 Dezembro 2016.

RUIZ, M. "Lor Rebeldes". VerdadAbierta.Com, 2010. Disponível em: <https://verdadabierta.com/los-rebeldes/>. Acesso em: Fevereiro 2021.

ZULETA, José. “Introducción”. Em: Guía para directores de Talleres de Escritura Creativa. Bogotá: Ministerio de Cultura da Colombia, 2019.