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Acima apresentamos um mapeamento alguns dos diversos projetos artísticos que desenvolvem atividades nos cárceres d'América Latina. Cada projeto está assinalado com um 🕮 e as homenagens com uma ★. Para ampliar a região clique ➕ e para diminuir clique ➖

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Projeto Andorinhas em Tocantinópolis-TO

O Projeto Andorinhas trouxe grandes mudanças para o contexto prisional em que surgiu, o município de Tocantinópolis, no Norte do Brasil. Funciona sob a coordenação de Aline Campos, que explica no texto de apresentação que disponibilizamos abaixo seu funcionamento, além de contar a trajetória do projeto até hoje. Além desse texto e antes dele, x leitxr vai encontrar o curta "Projeto Andorinhas. Ações educativas na casa de prisão provisória de Tocantinópolis/TO", legendado para o espanhol por nós, onde as participantes alunas da Universidade do Tocantins, bem como os participantes em privação de liberdade e trabalhadorxs do sistema penal  falam de sua experiência  no projeto e das reverberações que ele teve em seus próprios universos particulares.



UMA ANDORINHA SÓ NÃO FAZ VERÃO

Por Aline Campos


Projeto Andorinhas é o nome que demos ao conjunto de ações educativas que vem sendo desenvolvidas na Unidade Penal de Tocantinópolis, no Tocantins. Como o nome sugere, o projeto surge da junção de várias andorinhas e em alusão a sabedoria popular que ensina que “uma andorinha só não faz verão”.

Sempre que nos propomos a falar sobre quem somos (ou nos tornamos?) e o que fazemos somos chamadas a olhar para nossa história (como somos majoritariamente formadas por um grupo de educadoras mulheres, optamos por usar o gênero feminino para nos designar neste texto). Ao voltar nossas vistas para o passado, vemos que somos fruto de uma semente que encontrou terra fértil para germinar e se desenvolver. É difícil precisar a composição dessa terra que nos acolheu, deu sustentação e nutriu. Tampouco sabemos até quando (ou se) sobreviveremos a estiagem-Covid-19 que nos assola. Seguimos resistindo, enquanto temos força.


Shara Rezende/Governo do Tocantins

Nascemos em Tocantinópolis, um município com cerca de 23 mil habitantes, localizado no extremo norte do Tocantins, numa região conhecida como “Bico do papagaio”.  Fomos fecundadas pela extensão universitária, a partir da aproximação entre a Universidade Federal do Tocantins (UFT) – atualmente em transição para Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT) –  e a Unidade Penal de Tocantinópolis. No princípio, na unidade havia apenas uma sala vazia destinada à oferta de atividades educativas e uma gestão entusiasmada. Pode parecer pouco, mas tratando-se de contexto prisional era muitíssimo. Na universidade, por sua vez, havia uma docente com experiência na educação em prisões e algumas discentes dispostas a se aventurarem nesse contexto como nova possibilidade de vivência formativa. Assim começamos a tentar aprender a voar...

Era junho de 2017 quando a primeira atividade educativa extensionista foi proposta: oficinas experimentais de leitura e escrita. Sentávamos em roda, no chão, junto com 12 homens presos que se interessaram em participar do projeto. Levávamos semanalmente materiais para leitura, a partir dos quais eram desencadeadas nossas conversas que culminavam, ao final de cada encontro, numa proposta de escrita.

Ainda em 2017 nossas ações chegaram ao conhecimento do promotor de justiça que passou a nos apoiar e fortalecer. Novas instituições foram acionadas e as parcerias ampliadas. O espaço inicialmente vazio foi sendo cuidadosamente organizado e preenchido com mobília e livros arrecadados por meio de campanha de doação. 

Uma vez estruturado o espaço, em fevereiro de 2018 teve início a educação escolar, ofertada pela Secretaria Estadual de Educação, Juventude e Esportes. Nesse momento em que as ações educativas são ampliadas na unidade, encerramos as oficinas experimentais e passamos a atuar na promoção de um Clube de Leitura, que posteriormente passou a ser conhecido como Clube dos Livres. Essa reorganização de nossas ações foi motivada pelo desejo da população carcerária em ser contemplada com a Remição de Pena por Leitura (RPL). Nesta época, o documento orientador que existia era a recomendação nº 44 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e foi com base nela que reestruturamos o projeto. Hoje há a Resolução nº391 do CNJ, que regula a remição de pena não apenas por leitura, mas também para as demais práticas sociais educativas não-escolares.


Universidade Federal do Tocantins


Respeitando a normativa, sempre lemos um livro por mês. Porém, as escolhas das obras a serem lidas, bem como a forma como realizávamos a leitura foram alteradas conforme ouvíamos e dialogávamos com os homens presos participantes do projeto e aprendíamos mais sobre as especificidades da unidade em que atuamos. Justamente por acreditar na importância do diálogo na construção de ações educativas, e saber da transitoriedade característica da população carcerária nos contextos prisionais, optamos por organizar o projeto em módulos semestrais. Desse modo, a cada seis meses temos a oportunidade de avaliar coletivamente o andamento de nossa ação extensionista e reformulá-la de acordo com os interesses de todas as pessoas que fazem parte dela. 

No final de 2018 conseguimos escrever dois participantes do projeto que já tinham o Ensino Médio completo num processo seletivo para Ensino Superior EaD na UFT. Ambos foram aprovados e assim as ações educativas na unidade se ampliaram mais. No início de 2020, quando a Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Tocantinópolis passou a ofertar o Ensino Fundamental I na unidade, chegamos a garantia de acesso à educação em todos os níveis formais e com oferta de atividades também não – formal, por meio da extensão universitária. A junção de todas essas ações educativas são as andorinhas anunciando um novo verão para essa prisão em específico. 

    Voávamos muito bem. Além da realização das diversas ações educativas, publicamos em 2020, com o apoio do Poder Judiciário, dois livros sobre nossa experiência, nos quais temos textos escritos por muitas de nossas andorinhas. Infelizmente, subitamente tudo teve que ser suspendido por conta da pandemia de Covid-19, em março de 2020.  A situação era completamente atípica e não sabíamos a que alternativa recorrer. Foram dois meses sem nenhuma atividade, até que a irmã de um dos participantes do projeto nos procurou pedindo que fizéssemos algo, que não os deixássemos ainda mais isolados e sem comunicação e interação com a sociedade extramuros. O que poderíamos fazer? 

A verdade é que não tínhamos a menor ideia ou experiência com a educação à distância e/ou remota, sobretudo em prisões onde os limites são sempre maiores. O desafio estava posto. Nossa primeira ação para não sucumbir diante dos tamanhos fechamentos ao acesso à população carcerária a que nos vimos ter que aceitar por questão de saúde e ordem sanitária foram as Bibliotecas Ambulantes. Inspiradas nas ideias do escritor e educador argentino Carlos Ríos, confeccionávamos semanalmente atividades de leitura que colocávamos em caixas de leite para serem enviadas ao interior das celas, juntamente com propostas de produção escrita. Assim fizemos entre maio a outubro de 2020, até que tivemos que suspender nossas atividades novamente, dessa vez por conta de uma greve dos Policiais Penais por direitos trabalhistas.

Autorizaram a retomada de nossas atividades em novembro de 2020, mas estávamos cansadas de um ano emocionalmente devastador: o primeiro ano da pandemia de Covid-19. Faltava-nos força para retomar o trabalho de elaborar, semanalmente, atividades. Era só mais um mês, mas parecia uma vida toda. Estávamos entre nosso cansaço psicológico e nosso comprometimento com a educação. Para respeitarmos nossos limites, sem abrir mão da continuidade da oferta de ações educativas, convidamos mais pessoas para se juntarem a nós. Nasce, assim, a primeira versão de nossa atuação educativa envolvendo cartas: o Entre-nós: caderno-presente.


Projeto Andorinhas/Youtube


O ano de 2020 nos aproximou da experiência do encarceramento, ao nos impor a necessidade do isolamento em nossas moradias. Nossas interações sociais deram-se, sobretudo, de modo virtual. Diferente de nós, as pessoas presas vivenciaram o verdadeiro isolamento social, ficando em grande medida incomunicáveis com a sociedade extramuros. Diante dessa realidade, pareceu-nos especialmente oportuno convidar pessoas diversas para escrevem cartas para a população carcerária contando-lhes sobre suas experiências pessoais de isolamento durante o ano de 2020. Apostávamos simultaneamente na oportunidade de um olhar mais sensível para a experiência de estar preso, e na potência das cartas como veículo de comunicação. 

No curto prazo de uma semana conseguimos reunir 64 cartas, que juntas formaram o que denominamos de caderno-presente, uma espécie de livreto que confeccionamos aos participantes do projeto como material de leitura para o último mês do ano. 

A experiência foi tão positiva que a partir dela e com a parceria da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) elaboramos um projeto de troca de cartas entre homens presos em Tocantinópolis e em uma unidade penal de João Pessoa, na Paraíba, e pessoas não presas: o Entre-nós: cartas, palavras e escritas. Com esse projeto, elaboramos mensalmente um livreto com materiais diversos para leitura a partir de uma temática previamente definida e mediamos a troca de cartas entre as pessoas que participam do projeto, que dialogam sobre as temáticas a partir do livreto e suas experiências de vida. 

O primeiro módulo do Entre-nós ocorreu entre março e agosto de 2021, envolvendo 50 pessoas presas (correspondentes intramuros) e 25 pessoas não presas de diversos estados do país (correspondentes extramuros). Após a conclusão dessa primeira experiência e a realização de uma avaliação coletiva, a proposta foi melhorada e ampliada dando origem ao segundo módulo, iniciado em outubro e com previsão de conclusão para dezembro de 2021. Nesta segunda edição, o projeto conta com a participação de 25 correspondentes intramuros de João Pessoa, 31 correspondentes intramuros de Tocantinópolis e 56 correspondentes extramuros.

Em tempos cada vez mais virtuais e acelerados, nossas ações educativas em prisões resistem aos fechamentos e retrocessos valendo-se de cartas porque, como escreveu André Comte-Sponville², escrevemos uma carta:

Para habitar juntos a essencial solidão, a essencial separação, a essencial e comum fragilidade. Para descrever o tempo que está fazendo, o tempo que está passando. Para contar o que nos tornamos, o que somos, o que esperamos. Para exprimir a distância, sem a suprimir. O silêncio, sem o corromper. O eu, sem se fechar nele. Isso não substitui a fala. Isso não substitui nada. E nada, tampouco, o substitui: as verdadeiras cartas, aquelas que gostamos de receber, são gratuitas e insubstituíveis, como a vida, como o amor, como um presente, e são um presente, “Não é nada, sou eu”, escreve-me um amigo, “venho dizer-te que te amo muito, muito...” Não é nada, ou quase nada, e contudo um pedaço do mundo e da alma, transmitido como que por milagre, tão leve na mão, tão profundo no coração, tão próximo na grande distância. (COMTE-SPONVILLE, André. Bom Dia, Angústia! Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. Martins Fontes: São Paulo, 1997. p. 43-44.)


Neste contexto histórico que atravessamos, é disso que precisamos... nós e as pessoas que estão presas.