quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Mulheres Possíveis: corpo, gênero e encarceramento I

O livro Mulheres Possíveis: corpo, gênero e encarceramento (2019) reúne alguns dos resultados dos laboratórios que as artistas Beatriz Cruz, Leticia Olivares, Sandra Ximenez e Vânia Medeiros realizaram com mulheres privadas de liberdade na Penitenciária Feminina da Capital (PFC), no Carandiru, em São Paulo, Brasil. Os laboratórios (quatro, além de "o escambo poético") podem ser resumidos como espaços para experimentar formas de ser mulher fora dos enquadramentos patriarcais e punitivistas.

A seguir, compartilhamos alguns fragmentos que traduzimos para o espanhol do livro: a introdução, onde a proposta das artistas é explicada detalhadamente, e dois textos poéticos. Um é coletivo, resultante da costura de histórias muito breves sobre o nome próprio, o que nos faz perceber a quantidade e a diversidade de mulheres que participaram dos laboratórios e que são silenciadas no espaço prisional. O outro é um texto escrito por uma dessas mulheres. Nele, a incalculável potência do corpo é apresentada como inseparável do território (amazônico) com o qual ele se funde em um sorriso.

Dedicamos a seguinte entrada a outro dos textos do livro. Os resultados que sua tradução produziu merecem uma apresentação à parte.

                                                                                               


                            

São Paulo,

05 de dezembro de 2019

Olá,

Esta é uma carta, endereçada a você, que, em algum momento da sua história, entrou em contato com este livro. “Uma carta é uma visita”, colhemos em nossas buscas de definições para esta palavra. Te convidamos, então, a visitar essa coleção de folhas de papel, impressas com fotos, textos e desenhos que apresentam um pequeno recorte da vida de algumas mulheres, durante um período determinado. Nele, imagens e palavras revelam a singularidade de cada uma, ao mesmo tempo em que contam um relato coletivo. Diversas vozes ecoando para narrar histórias possíveis.

Esta publicação é fruto do Projeto Mulheres Possíveis: corpo, gênero e encarceramento, com apoio do programa Rumos Itaú Cultural 2017-2018. O trabalho, entretanto, acontece desde 2016, de forma voluntária ou com apoios pontuais de unidades do Sesc, uma ou duas vezes por semana, na Penitenciária Feminina da Capital (PFC), localizada no antigo complexo do Carandiru, em Santana, na Zona Norte de São Paulo. Esse lugar carrega uma memória que não pode ser apagada. As penitenciárias masculinas foram demolidas, foi criado um parque no local – o Parque da Juventude. As femininas permaneceram. Mais de um quilômetro de muros isolam a penitenciária das avenidas movimentadas no arredores e do cotidiano da cidade.

E você, onde você está agora?

O que você pode ver neste momento ao seu redor, do lugar onde está?

Já esteve ou está numa penitenciária?

“Consideramos as prisões algo natural, mas com frequência temos medo de enfrentar as realidades que elas produzem. Afinal, ninguém quer ser preso. Como seria angustiante demais lidar com a possibilidade de que qualquer pessoa, incluindo nós mesmos, pode se tornar um detento, tendemos a pensar a prisão como algo desconectado da nossa vida.” (DAVIS, 2018, p. 16)

Essa é uma afirmação de Angela Davis, filósofa e ativista estadunidense.

Você acha que a prisão é algo inevitável na sociedade?

Te fazemos essas perguntas porque, durante o Projeto, fizemos um monte delas – algumas triviais, outras mais complexas. Algumas estão destacadas, ao longo do livro. Foram feitas por e para mulheres, dentro e fora do sistema penitenciário. Talvez elas sejam uma forma de começar um diálogo ou de olhar ao redor da vida numa penitenciária, de entender o contexto de uma sociedade que aprisiona corpos de mulheres – sobretudo negras – de forma exponencial.


O que nos separa?

Talvez tenha sido essa, uma das perguntas que ficou reverberando por mais tempo. Chegamos até à PFC, em 2016, por um convite da Coordenadoria de Reintegração Social e Cidadania da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). A direção da penitenciária nos abriu as portas e sempre foi bastante receptiva às nossas idéias. Quatro mulheres artistas, que trabalham com diferentes linguagens – performance, música, artes visuais e teatro – e que, sobretudo, queriam conversar sobre corpo, gênero e encarceramento. Essas palavras passaram a ser eixos de pesquisa, conversa e experimentação e serviram para abordar temas pertinentes aos pensamentos e ações a respeito de pertencimento e autonomia dos corpos, o que é ser mulher, o que é liberdade, entre outras questões. Fomos, ao longo do projeto, criando e pensando sobre o significado desses e outros termos, construindo um glossário, a partir das definições a que chegávamos. Estes “verbetes” aparecem, ao longo do livro, em folhas azuis menores.

Começamos uma série de encontros que chamamos de Laboratórios de Criação (Labs) onde o corpo estava sempre no centro das experiências. Força, resistência, apatia, surto, cansaço, euforia, emoção: a busca era (e é) por mover algo neste espectro e nos conectar com o que está vivo em cada uma de nós.

No livro, estão imagens e palavras colhidas em quatro laboratórios de criação, que aconteceram entre outubro de 2018 e julho de 2019. No Lab_Caderno de Campo cada uma tinha um caderno, feito à mão, em que fazíamos propostas de desenho e escrita, semanalmente. A busca era por criar narrativas – ou contranarrativas – a partir daquelas que estão, todos os dias, vivendo o encarceramento. Presentificar o corpo, olhar ao redor e evocar imagens deste período.

No Lab_Performance, entrávamos todos os dias com uma mala de roupas – mais de 80 peças – para nos vestir ou despir. Tirar o uniforme e colocar sobre a pele outras camadas de subjetividade, relatar, com jogos teatrais, música e imagens, a força de cada corpo. O resultado deste momento foi uma performance apresentada para outras presas e convidadxs externos. Já no Lab_Culinária, cozinhamos e aprendemos receitas vegetarianas com a Chef Govinda Lilamrita, que conduzia o trabalho. Cozinhar era um pretexto para falar de autonomia, cuidado e de um tema importante no contexto prisional, a comida.

O Escambo Poético foi a última atividade realizada, com duração de quatro meses. Trata-se de uma troca de cartas entre mulheres que estão na penitenciária e mulheres que estão fora, inscritas mediante uma convocatória pública. Uma espécie de rede de sororidade. A carta, na prisão, é uma forma de comunicação que parece manter pulsando os corpos. O veículo para o encontro de mulheres que não se conheciam e se propuseram a trocar ideias, angústias, desejos, medos… Nós fazíamos o leva e traz. Em cada encontro, tanto dentro como fora, além de ler e responder às cartas, sugerimos textos de diversas autoras para serem discutidos, atividades reflexivas, exercícios corporais, de escrita e de desenho.

O livro também apresenta, além dos ecos destes momentos criativos, duas conversas entre mulheres que têm envolvimento com o sistema penitenciário e o Projeto. Trazemos, então Walessandra Souza Rodrigues entrevistando Dina Alves, e Govinda Lilamrta sendo entrevistada por Yamila Goldfarb. São vozes que se somam para pensarmos sobre o encarceramento de maneira mais ampla. Afinal, pensar sobre as mulheres que estão presas é pensar sobre como queremos, enquanto sociedade, lidar com a desigualdade social, a violência contra a mulher – em diversos âmbitos – o racismo e a política a respeito das drogas.

Procuramos, nesta publicação, não hierarquizar importância entre textos, imagens, desenhos e autorias. As narrativas são sobrepostas e entrelaçadas. Fomos responsáveis pela organização deste material, sempre em diálogo, com idas e vindas na PFC para compartilhar os andamentos deste processo. Ao mesmo tempo, participamos da criação, sendo tão autoras quanto todas colaboradoras desta obra. Ao final do livro há um índice, com os nomes relacionados aos conteúdos.

Que mulherES você é?

Esta foi outra das perguntas que fizemos nos processos, dentro e fora dos muros, e que segue nos acompanhando. São muitas as respostas e, com este livro e por meio dos encontros que ele tece, respondemos: Somos Mulheres Possíveis e dizemos sim à invenção de realidades através do fazer artístico.

Terminamos esta carta de apresentação com uma pergunta feita por Angela Davis, na tentativa de visualizarmos outros modos de existir:

“Um dos grandes desafios desse movimento é levar adiante um trabalho que crie ambientes mais humanos e habitáveis para as pessoas na prisão sem reforçar a permanência do sistema prisional. Como, então, alcançar o equilíbrio entre estar atento de maneira fervorosa às necessidades dos prisioneiros [...] e ao mesmo tempo, defender alternativas às penas de encarceramento como um todo, o fim da construção de presídios e estratégias abolicionistas que questionem o lugar da prisão em nosso futuro?” (DAVIS, 2018, p. 112)


Referência bibliográfica:

DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Difel, 2018.




Eu ia me chamar Maria Madalena, mas o avo registrou Edivania porque era o nome de urna filha que morreu.  Sou filha de Jacinete e Gercina, ia me chamar Jéssica,  mas ficou Eliane. Miriam acho que significa força. Fátima é o nome da minha bisavó. Juliana é homenagem ao  nome da amiga da minha mãe que se chamava Julieta.  Cristiane porque meu pai era apaixonado pela Cristiane  Torloni. Naftali é um nome hebraico. Samara nao sei por  que. Juliet porque é bonito. Tanaka Luanda porque meu  pai gosta da África. Grazielle porque tenho um olho azul  e outro castanho e meu nome ia ser Sulamita. Scheine  porque era o nome de urna enfermeira judaica e porque  sou herdeira de barões do café. Leticia significa alegria e  o escrivão falou para nao colocar acento. Silvia Alejandra  todos chamam de Alejandra. Monica foi meu pai que colocou, minha mãe disse que era o nome de uma mulher que ele tinha na rua. Vania porque ia me chamar  Ivana. Maria Luiza porque eu sou da praia e é o nome de  um peixe. Beatriz chamam de Bia. Sandra é arenosa. Dagma Aparecida porque minha mãe quase me perdeu e Dagma é nome de urna cigana. Anísia, Cilceli, Gislaine, Caren, Érica, Fernanda, Tabatha, Tanira, Tatiane Angela, Hilda, Ingrid, Jhoanna, Lourdes, Marlyn, Nady,  Shandelies, Maria, Suellen, Paola, Caline, Kamila, Sarah,  Rosangela, Utumphon, Cintia, Anna, Thereza, Camila,  Claudia, Cleude, Flora, Gisela, Karen, Maíra, Mariana,  Marina, Mayra, Oiga, Raquel, Renata, Thaís, Viviane, Isabel, Eloísa...




   

O meu sorriso é tão grande quanto o Rio Negro. Falar do Rio Negro é simplesmente falar de imensidão, de tesouros, de força, coragem sem limites... Nosso lindo e formoso Rio Negro nos traz um grande segredo onde os botos cor-de-rosa passeiam e trazem a magia do encontro com suas histórias do boto bravo, encantador, aquele que vira homem para seduzir as mulheres com todo seu encanto e depois simplesmente desaparecem. Lá também esconde-se a cobra Boiuna Sucuriju, a grande fera que surge do nada, corre no corpo um arrepio, o sangue nas veias fica frio, com seus olhos de fogo que encandeiam os pescadores que nele vagueiam. Grande mistério de força e coragem de um grande encontro, o encontro das águas, onde elas se abraçam, se tocam, mas não se misturam. O Rio Negro com todos os seus mistérios e o Rio Branco com sua grandeza e volume, cada um com seu jeito, ph e acidez diferente… Quando me deparo, vendo a tão grande Existência deste lindo rio, me ponho a pensar, assim é meu sorriso, sem limite. Contemplar essa enorme obra feita por Deus é simplesmente um encanto que me remete a um belo sorriso que refrigera a alma.

                     Escrita de Eliane

Mi sonrisa es tan grande como el Río Negro. Hablar del Río Negro es simplemente hablar de inmensidad, de tesoros, de fuerza, coraje sin límites… Nuestro lindo y hermoso Río Negro nos trae un gran secreto donde los delfines rosados pasean y traen la magia del encuentro con sus historias del delfín valiente, encantador, ese que se convierte en hombre para seducir a las mujeres con todo su encanto, y después simplemente desaparecen. Allá también se esconde la serpiente Boyuna Sucuriju, la gran fiera que surge de la nada, el cuerpo se va erizando, y la sangre en las venas helando, con sus ojos de fuego que deslumbran a los pescadores que en él deambulan. Gran misterio de fuerza y coraje de un gran encuentro, el encuentro de las aguas, donde ellas se abrazan, se tocan, pero no se mezclan. El Río Negro con todos sus misterios y el Río Blanco con su grandeza y volumen, cada uno con su estilo, pH y acidez diferente… Cuando me descubro, viendo la existencia tan grande de este lindo río, me pongo a pensar, así es mi sonrisa, sin límite. Contemplar esa enorme obra hecha por Dios es simplemente un encanto que me remite a una bella sonrisa que refresca el alma.

                     Escrito de Eliane

 


Participaram da tradução e revisão desta entrada: Bruna Macedo de Oliveira Rodrigues, Mario Rodríguez Torres, Ximena Vargas, Janaina Andriolli, Caterine Hernandez Valencia, Penélope Chaves Bruera e Cristiane Checchia

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