Nesta segunda entrada dedicada à ONG Mujeres Tras las Rejas, que trabalha com mulheres privadas de liberdade na cidade de Rosario (Argentina), compartilhamos uma entrevista com as atuais responsáveis pela oficina de poesia. Nela, Graciela Rojas, Claudia Almirón, Rosana Guardala e Lilian Alba nos contam sobre sua forma de trabalhar e entender a oficina. Após a entrevista, apresentamos uma seleção de poemas produzidos em anos anteriores nas oficinas e publicados em diferentes fanzines. Vale destacar que boa parte desses poemas é resultado de uma escrita coletiva e/ou anônima. Quer dizer, trata-se de uma proposta estético-política que se desloca dos enquadramentos individualizantes.
Para esta entrada, contamos com a colaboração de mulheres privadas de liberdade na Penitenciária Feminina de Foz do Iguaçu, que, também de forma coletiva, no espaço das oficinas de escrita criativa organizadas pelo projeto Direito à Poesia, realizaram a tradução da maioria dos poemas para o português.
Para a tradução, de maneira geral, foram adotados os seguintes passos: primeiro, os poemas foram lidos em voz alta em espanhol e as participantes da oficina fizeram uma tradução oral a partir do que compreendiam pela proximidade entre as línguas. Em seguida, ês oficineires ofereceram algumas explicações sobre palavras ou expressões não compreendidas e sobre o registro, por exemplo, se os termos utilizados eram gírias. A partir das diferentes versões propostas, o Laboratório de Tradução da UNILA definiu as versões finais, que foram apresentadas às participantes para sua aprovação.
Ao lado dos poemas e suas traduções aparecem alguns dos comentários (ou melhor, dos efeitos) que a leitura dos poemas das escritoras privadas de liberdade em Rosario produziram nas leitoras e tradutoras privadas de liberdade no Brasil. Da mesma forma, aparecem outras possibilidades de tradução que surgiram em voz alta durante o processo de tradução coletiva.
No caso dos poemas “Ser mãe, ser menina” e “O pecado e o perdão”, partiu-se de uma primeira tradução feita individualmente (por Mayara Nunes Correa e Gabriela da Silva de Brito, respectivamente) e depois foi feita uma revisão conjunta, em voz alta, na oficina. Os poemas “Não se pode voar com revista...” e “O cotidiano” também foram primeiro traduzidos individualmente, por Mayara Nunes Correa e Josiane Henrique, e depois revisados por integrantes do Laboratório de Tradução da UNILA, que também se encarregaram da tradução do poema “Como um encontro permanente”.
Participaram das traduções coletivas: Ana Laura Mendes, Andreia da Silva, Cassia Teixeira, Dyullian Correa, Fernanda de Souza, Iraci de Freitas, Jennifer Alecrin, Josiane Henrique, Karla Pinow, Kauana Domingues, Mayara Correa, Lucas dos Santos, Tainara Neves, Thalia Naiser, Vitoria Adão, Viviane da Cruz e Gabriela de Brito.
Por que, dentre as oficinas que são oferecidas por Mulheres Atrás das Grades, vocês decidiram fazer uma de poesia? Como entendem a importância dessas oficinas?
Acreditamos que a poesia é uma forma de olhar, de ver as coisas de uma nova maneira, ou seja, como uma forma de parar que termina sendo habilitadora. Assim, a escrita pode ter ou não a forma de um poema, mas tem sempre essência, ritmo, música e, sem dúvida, a novidade daquilo que nasce diante dos olhos de quem escreve.
A palavra como ponte...sentir, dizer, tornar possível. A emoção é transmitida nas vozes protagonistas. A poesia é pele, grito, angústia, dúvida, pergunta, riso e nó na garganta. É o modo e a forma.
As meninas, muitas vezes, se referem às oficinas como locais de distração ou que trazem ar pra elas, dão fôlego. Isso permite que elas saiam por um instante da rotina sufocante e atemporal. O mundo simbólico que a escrita abre produz efeitos diretos em quem participa da oficina. A proposta de uma escrita particular, como a poesia, não só abre esse mundo, mas o multiplica ao procurar as palavras exatas, a frase contundente, a expressão que melhor comunica. Não é apenas um exercício de mera escrita, mas potência tudo o que não é permitido dentro dos muros, aquilo que permite caminhar para mundos imaginários, fantásticos ou paralelos num lugar cinzento e cercado de grades.
O que vocês podem nos contar sobre o funcionamento das oficinas de poesia? Poderiam nos dar alguns exemplos das atividades que já fizeram?
As oficinas duram cerca de uma hora e meia. Preparamos o lugar e esperamos elas chegarem. Isso significa que montamos um lanche com chá, chimarrão ou alguma coisa refrescante dependendo da época do ano, e alguns biscoitos. O lanche proporciona um clima de espera, de cotidianidade, de proximidade e intimidade, que favorece o aparecimento da troca entre todes.
Depois, apresentamos a proposta que é sempre um convite, nunca uma obrigação. A atividade traz algum texto breve, disparador ou, também em alguns casos, pode deixar de lado a leitura para dar lugar aos sentidos (olfato, audição) e, em seguida, escrever a partir dessa percepção. Uma vez que termina o processo de escrita, e se as meninas quiserem, são convidadas a compartilhar a leitura do texto que escreveram no dia. Algumas leem suas próprias produções, outras aceitam que uma companheira leia a sua. A ideia de ler os escrito sem voz alta é que elas possam se animar a se abrir e também ver que muitas vezes seus sentires são compartilhados. Esse momento geralmente é repleto de emoções desencadeadas pelos escritos. Alegria, ansiedade, medo, tristeza, nostalgia e amor se entrelaçam em um bate-papo informal em que cada uma pode expressar livremente o que um texto provocou. Falar em voz alta, de forma cotidiana e simples.
Que relevância tem para vocês publicar o resultado das oficinas?
É muito importante para a ONG, mas acima de tudo para as mulheres privadas de sua liberdade, porque mostra que a palavra atravessa os muros e que o lugar em que estão é uma circunstância, mas o desejo e o trabalho com ela podem levá-las a outros lugares potenciais.
Reforça a ideia de poder estar em contato com o fora a partir de outro lugar, não o de “presas”, mas sim o de escritoras, autoras de uma obra coletiva.
Que seus escritos cheguem a lugares como as salas das universidades ou o Festival Internacional de Poesia, que acontece anualmente em nossa cidade. Saber que são lidas por vocês, e que vocês têm interesse em traduzir suas obras gera um estremecimento em suas realidades. Mulheres que não são vistas nem ouvidas, que vivem em um mundo paralelo ao que vive o restante da sociedade e que carregam ou carregaram estigmas sociais por estarem ali. Assim voltam a serem vistas e ouvidas, levadas em consideração, e isso dá valor à pessoa, a dignifica. É mais do que relevante, é acreditar na criação, saber ser potentes, reconhecer-se como fazedoras, mostrar-se a partir do mais profundo. A palavra nutre, abriga, acalma.
Supersticiones | Superstições
No escribas tu nombre en la pared de la celda
Porque si te vas y queda tu nombre acá
Podes volver algún día
Si se te vuelca a la azúcar, libertad
Y si es yerba, traslado
Cuando te vayas no mires pa trás
Las que quedamos nos unimos en un solo aplauso de despedida
Não escreva seu nome na parede da cela
Porque se você partir e seu nome ficar aqui
Você pode voltar algum dia
Se o açúcar derramar, é liberdade
E se for erva-mate, é transferência
Quando você partir, não olhe pra trás
Nós que ficamos nos unimos em um único aplauso de despedida
Gisela Schimpf & Daniela Dalinger
Poema do fanzine Que tu mente sea tu piloto
Los pajaritos | Os passarinhos
En esta Unidad
todos los días los gorriones
están presos como nosotras.
Nosotras que tenemos corazón
les damos de comer.
Yo si fuera flaca
me prendería de sus alas
y me iría volando con ellos.
Nesta Unidade
todos os dias os pardais
estão presos como nós.
Nós que temos coração
damos de comer pra eles.
Eu, se fosse magra,
me prenderia nas asas deles
e sairia voando.
Criação coletivaPoema do fanzine Mujeres tras las rejas
Los gorriones son más chorros…
Os pardais são mais ratos...
Los gorriones son más chorros que nosotras.
Te levantás dos segundos y se comen los fideos.
Ni lerdos ni perezosos
vienen en banda
a comer a Patricia.
Os pardais são mais ratos do que nós
Você levanta dois segundos e eles comem o miojo
Como não são bobos nem nada
eles vêm em bando
comer a Patrícia.
mais lisos
o macarrão
Nem lerdos nem preguiçosos
gente, quem é a Patrícia?
AnônimoPoema do fanzine Mujeres tras las rejas
Yo estuve con un policía… | Eu estive com um policial...
Yo estuve con un policía.
Hay buenos y malos.
Estuve con las dos clases.
Nos encontramos en un lugar
donde yo no podía estar.
Yo andaba en otra, en la noche.
No era wow, pero estaba lindo.
Juntos duramos dos días.
Eu estive com um policial.
Têm bons e ruins.
Estive com os dois tipos
Nós nos encontramos em um lugar
onde eu não podia estar.
Eu estava em outra, na noite.
Não era uau, mas era bonito.
Juntos duramos dois dias.
as duas classes
na viatura? Na delegacia?
não foi nossa que policial mais gostoso do mundo, mas está valendo
AnónimoPoema do fanzine Mujeres tras las rejas
El encierro | O encarceramento
O trancamento, o inferno
Me entristece y
nos pone mal.
Por eso hay que salir un poco
(al patio)
a tomar sol
con mis amigas
y mirar los pájaros volar,
cruzarse en los techos
de la cárcel en donde envejezco.
Me entristece e nos faz mal.
Por isso, tem que sair um pouco
(para o pátio)
pegar sol
com minhas amigas
e olhar os pássaros voar,
se cruzar nos telhados
do cárcere onde envelheço.
quem vai no pátio não vai pra olhar os pássaros, vai para fofocar e namorar
cruzar os telhados
Criação coletiva
Poema do fanzine Mujeres tras las rejas
El pecado y el perdón | O pecado e o perdão
um poema picante
Hay una hermana jovata
leyendo la palabra del Señor.
Hace dos meses que no viene
y nosotras estamos enfrentadas
en otra mesa.
Tenemos mate, trapos y tijeras.
Libros, casi todos porno.
Acabamos de leer un cuento
sobre dos minas que se dan masa,
una cana con trenza y una chica
en cupé.
¡Fuego!
En la vida hay que probar todo.
Tem uma irmã velhota
lendo a palavra do Senhor.
Faz dois meses que não vem
e nós estamos sentadas frente a frente
em outra mesa.
Temos chimarrão, tecidos e tesouras.
Livros, quase todos pornô.
Acabamos de ler um conto
sobre duas minas que dão uns amassos,
uma policial com trança e uma menina
em um coupé.
Fogo!
Na vida tem que provar tudo.
falsa profeta
levando a palavra
se amassam
cupê
Lucía Alcaraz & Rosana Esquivel
Poema do fanzine Mujeres tras las rejas
Ser madre, ser niña | Ser mãe, ser menina
Me gustaría llevar a mi hija al parque
queremos hacer tantas cosas
que no sabemos qué hacer
Jugar, correr, reír de alegría.
Quisiera salir de este lugar
para estar con mis hijos y mis nietos
estamos tan tristes en este lugar
estar con los chicos te alegra todo
Fiorella despertaba a todas
—permiso chicas — relinda su educación.
Cuando jugás con los nenes
sos un niño más
y eso es lo que queremos volver a ser.
Cuando vienen los hijos de las chicas a la visita es...
correr todo.
Los sábados hay olor a pastafrola
pizza, empanadas
es lindo verlos correr.
Eu gostaria de levar minha filha ao parque
queremos fazer tantas coisas
que não sabemos o que fazer
Brincar, correr, rir de alegria.
Gostaria de sair desse lugar
para estar com meus filhos e netos
estamos tão tristes neste lugar
estar com os meninos alegra tudo
Fiorella acordava todas
— com licença meninas — tão educada ela.
Quando você brinca com os piás
você é uma criança a mais
e isso é o que queremos voltar a ser.
Quando os filhos das meninas vêm nas visitas é...
correria total.
Os sábados tem cheiro de torta de goiabada
de pizza e de empanada
é lindo ver eles correndo.
me alegra muito
os neném
você é um menino mais
No dia de visita na PFF tem cheiro de mãe...
Tem uma coisa que todo mundo faz na visita e não fala. A gente que gosta do cheiro da mãe ou gosta do cheiro do filho, pega uma peça se a gente pode. Se a gente' tiver uma oportunidade de pegar uma peça deles, a gente pega. A minha mãe veio uma vez só nesses quatro cinco anos que eu estou aqui. A primeira coisa que eu fiz foi fazer ela tirar o top e trocar comigo... eu peguei o top dela e peguei o chinelo e dei o meu. Eu fiquei sentindo o cheiro dela no top dela até sair.
Lucía Alcaraz & Rosana Esquivel
Poema do fanzine Las Leonas
No se puede volar con requisa
Não se pode voar com revista
No se puede volar con requisa.
Prohibido la libertad de expresión.
Imposibilidad de medicación para niños.
Empleadas verdugas, afirmado al 100 %, ok?
Chicas leonas prohibido decir basta.
Promesas, posibilidad, palabras
que parecen nubes acá adentro.
Basta de medicación,
el grupo dice basta de medicación sin nombre,
sin carne, todo el día pollo que si no hubiera
rejas en el techo saldríamos volando =)
Não se pode voar com revista
É proibida a liberdade de expressão
Impossível remédio para os meninos
A empregada carrasca, confirmado 100%, belê?
Meninas leoas proibido dizer chega
Promessas, possibilidades, palavras
que parecem nuvens aqui dentro.
Chega de remédio,
o grupo diz chega de remédio sem nome,
sem carne, todos os dias tem frango que se não tivesse
grade no telhado a gente saía voando =)
A empregada tem chicote, que está firmado a 100% OK?
Meninas leoas chega de dizer está proibido
no grupo dizem
Ana Basualdo,Cintia Giménez & Rosana Maidana.
Poema do fanzine Las Leonas
Lo cotidiano | O cotidiano
Me levanto y pongo la pava
todo el mundo hace lo mismo
y si pasa la asistente le pido si necesito algo
si es un llamado o una autorización
para que nos traigan un electrodoméstico
la asistente es la caminante.
Arroz con leche
flan, flan, flan
gelatina, gelatina, gelatina
esa es la semana.
Nos despertamos y nos miramos
como diciendo hoy a quién le toca
corremos para todos lados
es un encierro muy chico.
El otro día después que estuvimos
compartiendo empanadas
fue que vino todo el lío
la acción represiva
esa es la costumbre que ellos tienen.
Eu me levanto e coloco a chaleira no fogo
todo mundo faz o mesmo
e se a assistente passar eu peço se preciso de alguma coisa
Se for uma ligação ou uma autorização
para nos trazer um eletrodoméstico
a assistente é a andadora.
Arroz doce
pudim, pudim, pudim
gelatina, gelatina, gelatina
essa é a semana.
Acordamos e olhamos uma para o outra
como se disséssemos hoje é a vez de quem
corremos para todo lado
É um confinamento muito pequeno.
Outro dia depois de estarmos
compartilhando empanadas
foi que deu a maior confusão
a ação repressiva
Esse é o costume que eles têm.
Arroz com leite
hoje de quem é a vez
uma prisão muito pequena?/é uma cela muito pequena?
Criação coletiva
Poema do fanzine Las Leonas
Como una juntada permanente
Como um encontro permanente
Es como una juntada permanente con amigas
tomamos mate charlamos
se lava se recauchuta
al fondo suena Leo y Karina
los pajaritos suben bajan la reja del cielo
la vida es como una milonga
hay que saberla bailar
la vida es como una gran anécdota
me pongo a contarla y vuela
la libertad no se toma ni en sueños
yo tuve una vida difícil
las ideas las tengo todas en la cabeza
no me las dice nadie
la abuela lee sobre bicicletas
al Agustín le gusta pintar por fuera de todo
se rompe las reglas del papel
se escribe a dos manos
en la mesa la pared la hoja
armo mi libro y lo destruyo porque es mío
Es como una juntada permanente con amigas
van a volver a entrar?
acá se paga condena
largas culpas
acá los días de nubes
somos nubes
para que salga a la luz se escribe
-escribamos de la vida es
-escribamos un cuento para chicos
se viene el día del niño
y ellos aunque estén acá
siguen siendo niños
la culpa es un invento
mi error fue no cambiar el domicilio
y la culpa de que un niño viva acá
estoy pagando
algo que no hice
Es como una juntada
permanente
con amigas
se nos vaya en un suspiro
se caiga la bronca
toda prendida en el papel
la pared el piso
que estamos vivas
con la incertidumbre de no saber
— eso también pasa afuera
— y si hay quilombo o se prende fuego todo?
É como um encontro permanente com as amigas
tomamos chimarrão conversamos
a gente lava dá aquela recauchutada
ao fundo se escuta Leo e Karina
os passarinhos sobem descem pela grade do céu
a vida é como uma milonga
tem que saber como dançar
a vida é como uma grande anedota
começo a contá-la e ela voa
a liberdade não se alcança nem em sonhos
eu tive uma vida difícil
as ideias tenho todas na cabeça
e ninguém me conta elas
a avó lê sobre bicicletas
Agustín gosta de pintar saindo das margens
ele quebra as regras do papel
escrever com as duas mãos
na mesa na parede na folha
monto meu livro e destruo porque é meu
É como um encontro permanente com as amigas
será que vão voltar pra cá?
aqui é paga a sentença
longas culpas
aqui nos dias com nuvens
somos nuvens
para que haja luz se escreve
— vamos escrever sobre a vida é
— vamos escrever um conto para as crianças
o dia das crianças está chegando
e mesmo que estejam aqui
continuam sendo crianças
a culpa é uma invenção
meu erro foi não mudar de endereço
e a culpa de que uma criança more aqui
estou pagando
algo que eu não fiz
É como um encontro
permanente
com amigas
acabe num piscar de olhos
se despeje a raiva
toda ardendo no papel
na parede no piso
que estamos vivas
com a incerteza de não saber
— isso também acontece lá fora
— e se tem treta ou se toca fogo em tudo?
Criação coletiva
Poema do fanzine Las leonas